Folha Letras - A mais antiga baixada do Rio de Janeiro (final)
* Arthur Soffiati - Atualizado em 31/07/2024 08:38
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A tentativa de instalar, no atual norte fluminense, uma base de colonização europeia com a Capitania de São Tomé foi efêmera: durou apenas seis anos (1539-1545). Pero de Gois abandonou a área que lhe foi doada pela Coroa Portuguesa e seu filho, Gil de Gois, devolveu-a oficialmente em 1619. A colonização contínua da região começou oficialmente em 1632, quando sete fidalgos (Sete Capitães) viajaram do Rio de Janeiro e de Cabo Frio para tomar posse das sesmarias que requereram ao rei de Portugal dentro da capitania devolvida. Essas terras se estendiam entre os rios Macaé e Iguaçu. O segundo é hoje a lagoa do Açu. Nesse deslocamento, os Sete Capitães descrevem as terras correspondentes à área que analisamos. Falam principalmente das lagoas de Carapebus e Feia. Erguem currais e um pequeno oratório em devoção a São Miguel em local próximo da atual igreja de São Miguel, em Barra do Furado.

O próximo passo fundamental da história dessa área é a abertura da vala do Furado pelo capitão José de Barcelos Machado, em 1688. Ele é um dos herdeiros dos Sete Capitães. Quissamã tem seu núcleo original no Morgado de Capivari, pertencente ao capitão e uma das quatro grandes propriedades rurais de região no século XVII.

O núcleo original de Quissamã transferiu-se para as margens da lagoa Feia com o nome de Nossa Senhora do Desterro de Capivari. Posteriormente, deslocou-se para o ponto atual de Quissamã, entre os tabuleiros e a restinga. Everardo Backheuseur registra três caminhos importantes a partir de N.S. do Desterro de Capivari: 1- em direção a Quissamã passando por Farinha Seca dos Religiosos do Carmo; 2- em direção ao Engenho Carapebus Pequeno, atravessando o Campos dos Sabões; e 3- em direção a Barra do Furado (“Da trilha ao trilho”. Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia IV. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1944). Cumpre lembrar que o principal caminho entre o Rio de Janeiro e Salvador passava pela costa desse território, entre Macaé e Barra do Furado. Foi um caminho muito percorrido e registrado em 1837 pelo major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde, 1837 (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837). Por ela, passaram os naturalistas Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815 (“Viagem ao Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989), e Auguste de Saint-Hilaire em 1818 (“Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil”. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974). Ambos deixaram preciosas informações sobre flora, fauna, cana, gado e Barra do Furado, mas eles passaram por fora de Carapebus e Quissamã.

A primeira metade do século XIX é marcada pelo hidroviarismo em todo o Brasil. Abrir canais de navegação era uma das formas de promover o “desenvolvimento”. Na futura região de Campos, quatro canais foram abertos. O mais famoso é o canal ligando Campos a Macaé. Ele começava no rio Paraíba do Sul e terminava no rio Macaé, aproveitando a lagoa Feia. A engenharia só podia buscar terrenos baixos para seu curso. Assim, entre a lagoa Feia e Macaé, o canal tem seu maior trecho na restinga. Hoje abandonado, ele conserva o trecho da restinga em bom estado, ainda sendo navegável por embarcações adequadas.

No final do século XIX, os engenho e usinas antigos foram substituídos por engenhos modernos. Nessa linha, inserem-se o Engenho Central de Quissamã e a Usina de Carapebus. A indústria sucroalcooleira alcança seu auge na primeira metade do século XX e exige terras submersas ou alagáveis. Os governos federais e estaduais criam comissões de saneamento, na verdade visando a drenagem para disponibilizar terras à próspera indústria e ao gado. A área mais intensamente drenada foi a margem direita do rio Paraíba do Sul entre Itereré e a foz do rio. Vale dizer, a planície aluvial e a restinga de Goytacazes. A área entre os rios Ururaí e Macaé não sofreu intervenções muito impactantes, salvo nos rios Urubu, Macabu e Macaé. De qualquer maneira, o impacto ambiental causado pela drenagem foi muito grande.

Considere-se também o secular desmatamento da área em questão a partir do século XVII. Esse território ficava relativamente à margem dos centros mais dinâmicos da região: Campos e São João da Barra. A partir do século XVIII, Quissamã se afirma como reduto da nobreza rural, embora integrante de Macaé. A grande ferrovia Rio de Janeiro-Vitória integra Campos, Quissamã, Carapebus e Macaé. De Quissamã, partia a grande ferrovia em direção a Nova Friburgo, passando por Cantagalo e recebendo um ramal proveniente de Santa Maria Madalena. Pelas duas ferrovias, Quissamã escoava açúcar das terras baixas e café das terras altas.

Na primeira metade do século XX (1942-49), foi aberto o polêmico canal da Flecha pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, ligando a lagoa Feia ao mar na altura da antiga Barra do Furado. Marcelino Ramos da Silva já tentara esta comunicação no final do século XIX pelo equivocado canal de Jagoroaba.

A indústria sucroalcooleira entrou em declínio a partir de 1970. Em 1975, tentou-se uma sobrevida para usinas e destilarias com o Proálcool, para a produção de combustível que parcialmente substituísse o petróleo embargado pelos países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em 1973. A produção de álcool decuplicou a produção de vinhoto, subproduto causador de intenso impacto ambiental, se não devidamente tratado. O tratamento encarecia a produção de álcool. Então, ele era simplesmente lançado em rios e lagoas, afetando a fauna aquática e a atividade pesqueira.

Mas a indústria sucroalcooleira entrou em declínio, levando a maioria das usinas e destilarias à falência. As de Quissamã e Carapebus foram desativadas. Na década de 1980, entrou em jogo uma nova fonte de renda: os royalties da exploração petrolífera na Bacia de Campos. Os recursos entravam sem muito esforço dos municípios. Foram e ainda são mal aplicados, não deixando resultados socioambientalmente úteis permanentes do seu uso.

Projetos portuários e geradores de energia também foram propostos para o território entre os rios Ururaí e Macaé. Sem considerar a base da Petrobras em Macaé, o ponto mais visado foi o trecho final do canal da Flecha, entre a bateria de comportas e a foz. Depois da construção dos espigões de pedra em Barra do Furado, obra que desalinhou a costa entre Quissamã e Campos, foi projetado um terminal pesqueiro, que não foi adiante. Posteriormente um complexo industrial-portuário, que também malogrou. Fala-se agora numa termelétrica movida a gás natural nesse trecho. Quanto às mudanças climáticas, chuvas torrenciais e volumosas são raras na área em estudo ou causam baixo impacto por ser ela pouco urbanizada. O temporal que se abateu sobre Carapebus em dezembro de 2022 causou enchente inédita na história das cidades da área em questão. Trata-se de fenômeno que pode se tornar comum, mesmo com a baixa urbanização e com a rede hídrica favorável à drenagem urbana.

Por fim, uma palavra sobre cultura e proteção ambiental. Quissamã conserva um conjunto arquitetônico apreciável na baixada, assim como Santa Maria Madalena na serra. Mas as perspectivas para o futuro não são muito promissoras. Não existe uma política pública consistente de proteção ao patrimônio edificado. Na cultura popular, subsistem o fado e o jongo, principalmente na fazenda Machadinha, mas ambas as manifestações foram muito adulteradas pela atividade turística. Na literatura, destaco a produção de Iberê de Souza Cardoso, sobretudo com o livro de contos “Brejo Grande: contos regionais do norte-fluminense” (Quissamã: 2008), ambientados nas antigas paisagens de Quissamã (tabuleiros e restinga), e de Sergio Cid, com seu romance memorialista “Retalhos da infância” (Rio de Janeiro: São José, 1979), ambientado mais em Campos, entre o canal da Flecha e o extinto rio Bragança.

Quanto à proteção ambiental, cabe salientar a criação do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, envolvendo Macaé, Carapebus e Quissamã e protegendo uma significativa amostra da vegetação de restinga e sua fauna. Tendo sido local de intensa circulação de pessoas e comércio, parece milagre que essa amostra tenha se conservado desde a chegada dos europeus à região. O Parque tem provocado muitos estudos, mas muito mais deve ser estudado nesse território. Muito pouco se sabe sobre a antiga área das Colinas e Maciços Costeiros, onde apenas se destacam os pequenos núcleos urbanos de Serrinha, Caxeta, Ibitioca, Santa Rita e São Benedito. Essa unidade geológica sofreu intenso desmatamento. Cortada pela BR-101, ela foi muito impactada pela duplicação da rodovia. Trata-se de um território bastante desconhecido e merecedor de estudos ambientais, sociais e históricos.
*Professor, historiador, ambientalista, escritor e membro da ACL.
 

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