Folha Letras - Do cotidiano maior que as sagas
- Atualizado em 08/05/2024 01:12
 
York às duas margens do rio Ouse
York às duas margens do rio Ouse / Divulgação
*Ronaldo Junior (*)
A lembrança retorna às retinas como se as ruas as sarjetas os odores os ruídos o arfar do marceneiro a manusear sua ferramenta fossem agora. E são, pois saem do poema e recriam — cena por cena — as passagens e descobertas de anos atrás.
A palavra, em começo, fez o estopim do verso. Ela, que traduz a textura e a rudeza das muralhas e pessoas que compõem a cidade, também é peça guardada no museu para lembrar quase
um século de dominação Viking sobre a chamada Jorvik.
E o poeta, ao acompanhar a — contrastante — velha cidade, faz relato do que alcança suas narinas e do que fricciona a sola dos seus calçados. Tudo ao redor é camada a ser recortada com a lâmina da palavra, até alcançar o cerne — do rio Ouse aos portões que recontam Ricardo III.
As ruas, por sua vez, exalam os ébrios que vivenciam a cidade feito piratas escandinavos,
trajados de violência e impulsividade a compor a cena que o cineasta-poeta vivencia com suas
lentes lacrimais, sendo cada verso um frame que atravessa lentamente o segundo-instante, que
passa num tempo próprio.
Entre as ocorrências cruas que se entrecruzam, os crânios vazados ainda guardam, na sobrevivência despropositada daquilo que um dia foram, versos questionadores que ecoam pelos séculos, mesmo antes de terem sido escritos: “Know’st thou not, there is but one theme for ever-enduring bards? / And that is the theme of War, the fortune of battles, / The making of perfect soldiers?”i
E, das batalhas expostas no museu, surgiu a palavra que originou o verso, matizado de sangue etílico escorrendo dos conflitos cotidianos, num poema que floresceu apenas dias depois, já em Edimburgo, quando o poeta seguia viagem. i
“Não sabes que há senão um tema para bardos sempiternos? / E que esse é o tema da Guerra, a fortuna das batalhas, / A feitura de soldados perfeitos?” — trecho do poema “As I Ponder’d in Silence” (“Enquanto eu Ponderava em Silêncio”), de Walt Whitman. Tradução de Adriano Scandolara.
(*)  Poeta, professor de Letras e presidente da Academia
Campista de Letras (ACL)
 
Poema de Aluysio Abreu Barbosa (**)
old york
(a silvana)
vikings no museu são cheiros
respiração do entalhe impressa no ato
que não sopra dentro dos crânios vazados
— digitais rudes na morte e na cerca
sobrevivem ao tempo no cerco do barro
fedem as férteis lembranças de lodo
do cotidiano maior que as sagas
por lázaro, estórias da lama do ouse
recortam york, a velha, em camadas
são cores nas ruas os vikings de hoje
são loucas inglesas de louros cabelos
no agudo tingido à luta dos ébrios
rosados de sangue, à flor da pele
edimburgo, 12/09/07
(**) Poeta, jornalista e membro da Academia Campista de Letras (ACL)

 
Museu Viking de York
Museu Viking de York / Divulgação

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