A destruição das Casas Grandes em Campos e o despertencimento
Edmundo Siqueira 16/06/2024 11:15 - Atualizado em 16/06/2024 11:26
Vista do interior do Solar dos Airizes
Vista do interior do Solar dos Airizes / Foto: Edmundo Siqueira


É preciso reconhecer que o campista, em sua maioria, não valoriza sua história. A destruição sistemática do patrimônio histórico, o desconhecimento dos vultos, as datas importantes ignoradas, e tantas outras provas dessa desvalorização são evidentes.

Porém, apenas apontar dedos preconceituosos para os que não sabem quem foi Benta Pereira ou Nilo Peçanha, ou onde fica o Solar dos Airizes, não resolve. E pior: estimula o distanciamento das pessoas, e faz com que apenas um grupo restrito mantenha-se como um autoproclamado guardião do conhecimento histórico local.

José do Patrocínio
José do Patrocínio / Câmara dos Deputados
Se alunos das escolas públicas de Campos não sabem quem foi José do Patrocínio, não é culpa deles. Não foram apresentados, e se foram, não da maneira correta. Caso sejam “obrigados” a decorar seu nome e seu local de nascimento, o personagem perde completamente o apelo. Primeiro precisam saber que ele era filho de um vigário com uma escravizada e se tornou um dos maiores abolicionistas do Brasil, exercendo um papel determinante, inclusive na conscientização da princesa Isabel. Além de grande jornalista e orador. E a partir de sua história, dizer que ele é campista, criado em Lagoa de Cima.


Esses mesmos discentes precisam saber que uma mulher liderou um movimento revolucionário que mudou a história de Campos, em um tempo em que a participação política feminina era extremamente difícil. Precisam admirar Benta Pereira antes de saber que ela é de Campos, e que o hino da cidade faz referência à sua pessoa.

Existe uma máxima quando falamos em pertencimento e valorização de patrimônios: só é possível gostar do que se conhece. A obviedade da afirmação não elimina sua importância. Não é possível criar envolvimento e preservação histórica de algo amplamente desconhecido.

Cultura sem público para além dos eventos

Os shows e eventos são parte importante do que chamamos de “política cultural” — mas estão longe de ser a sua essência. Os eventos devem ser a consequência de um trabalho de valorização de artistas e expressões locais, sob pena de trazer apenas fazedores de cultura estrangeiros para se apresentar.

Temos exemplos bem sucedidos. O FDP! - Festival Doces Palavras é um deles. E justamente é um evento que se mostra como consequência de um trabalho prévio. A ideia do festival é a apresentação de literatura e doces regionais produzidos em âmbito local. O FDP! não existiria sem que gente de Campos, da literatura e dos doces, tivessem produzido e de alguma forma sendo consumidos.


Embora educação e cultura não sejam medidas por resultados e lucro (seus ganhos por vezes são aferidos de outras formas), pensar em subsistência a partir de expressões culturais locais é essencial. Eventos e festivais não são apenas formas de valorização, mas também podem ser usados como forma de oferecer retorno financeiro aos expositores.

A destruição das Casas Grandes

Campos dos Goytacazes é uma cidade de pelo menos 370 anos. Toda essa história deixou uma enormidade de patrimônio materiais e imateriais. Se nos atermos às construções, vemos em Campos duas expressões quase determinantes: os solares e as igrejas.
Reprodução


Os solares têm relação direta com os ciclos econômicos que a cidade sofreu. O gado e depois a cana-de-açúcar determinaram um tipo de moradia das elites econômicas locais. Era preciso demonstrar força e riqueza a partir de grandes casas, ou os solares, que também davam aos seus donos títulos de nobreza. A chamada “nobreza da terra”.

As construções religiosas trazem a história da presença da igreja católica na região, que veio com a missão de catequizar os povos originários e garantir a presença portuguesa na cidade que se constituía.

Apesar da beleza desses casarões e do simbolismo das igrejas, toda essa história também se constituiu com violência. Escravizados e indígenas eram explorados ao máximo para garantir que o “desenvolvimento” acontecesse. Como uma das características da colonização que tivemos por aqui, foi imposto todo tipo de apagamento das culturas locais originárias e das trazidas pelos escravizados.
Solar do Colégio, prédio que hoje abriga o Arquivo Público de Campos foi restaurado pela Uenf nos anos 1990 para ser uma Escola de Cinema. Construído pelos jesuítas, foi sede de uma enorme fazenda em Campos
Solar do Colégio, prédio que hoje abriga o Arquivo Público de Campos foi restaurado pela Uenf nos anos 1990 para ser uma Escola de Cinema. Construído pelos jesuítas, foi sede de uma enorme fazenda em Campos / Reprodução


Campos talvez tenha optado pelo abandono dessas construções por ter alijado a maioria de sua população de seus significados. As “casas grandes” possivelmente foram destruídas por terem se mantido assim com o passar dos anos.

Solar dos Airizes
Solar dos Airizes / Foto: Edmundo Siqueira
Dois dos principais patrimônios materiais que temos de pé em Campos refletem isso fortemente. O Solar dos Airizes representando o poder econômico e o Solar do Colégio o poder religioso. Embora tragam todo histórico de violência, trazem também o potencial de ensinar, de promover educação patrimonial e a necessária consciência do que foi feito.


Além de conscientizar, construções assim precisam hoje assumir usos opostos dos assumidos antes. O Solar do Colégio abriga o Arquivo Público de Campos atualmente, e já foi preparado para ser uma escola de cinema pela Universidade Estadual do Norte Fluminense - Uenf. Uma construção histórica servindo para democratizar o acesso à arte, cultura, história, memória e educação.

O Airizes passa por um processo de salvamento, depois de anos de abandono. E caso seja realmente salvo, deverá ter seu uso discutido com ampla participação social, para que o pertencimento aconteça da única forma possível: conhecendo. A partir disso, a criação de um museu ou centro de memória não deve ser fechado e elitizado.
Deve trazer a história de todos que construíram a cidade, a apresentá-la de forma mais democrática possível. Principalmente para os que ainda hoje não conhecem sua história. 

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