Sem chá e sem simpatia: a inteligência barulhenta de Maria da Conceição Tavares
Edmundo Siqueira 09/06/2024 11:38 - Atualizado em 09/06/2024 11:50
Foto: Acervo da Unicamp
Quando a Unicamp comemorava os 40 anos da existência de seu Instituto de Economia, em 2008, sentava em uma cadeira na entrada do auditório, em lugar reservado especialmente para ela, a professora Maria da Conceição Tavares. Fumante inveterada e desbocada por excelência, Conceição estava apartada da plateia, mas intervia sem pudor em todas as palestras antes de ser chamada ao palco para a sua apresentação.

Apesar de ser uma das principais formuladoras da tradição da chamada “Escola de Campinas” — que era mais voltada à participação do Estado na economia —, a presença da professora incomodava e sua voz era muitas vezes — quase sempre — contra-hegemônica. Mas essas duas condições eram velhas conhecidas de Conceição.

A professora Maria da Conceição Tavares se transformou em um “fenômeno pop” após vídeos de suas aulas viralizarem, primeiro no TikTok, depois em toda internet. Além das aulas, trechos da entrevista que concedeu ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1995, ainda são compartilhados aos montes.

Economista heterodoxa e fenômeno pop
Economista heterodoxa e fenômeno pop / Reprodução YouTube
Os memes também foram inevitáveis. Com gestos firmes, forte sotaque português, a voz rouca típica de fumantes (o cigarro sempre estava presente nos vídeos) e os gritos que usava para dar ênfase às palavras e ideias, fizeram de Conceição uma “diva” no mundo virtual, principalmente entre os jovens progressistas.


No evento da Unicamp de 2008, na cadeira reservada para ela, a economista bradava. Sempre que ouvia um convidado dizer algo de que discordava, rebatia: “não é assim!” ou “isso é uma bobagem!”, e principalmente, “isso está errado!”. Para o leitor que já viu os vídeos da professora, ou a conheceu pessoalmente, é perfeitamente possível ouvir a voz e o sotaque carregado de erres nessas frases.

‘A inteligência mais barulhenta que conheci’

A contrahegemonía de Conceição por vezes a colocaram em uma posição de fragilidade perante os colegas economistas e acadêmicos. A primeira vez que ganhou destaque nacional foi em 1986, quando chorou na Rede Globo ao comentar sobre o Plano Cruzado. Defensora estridente e apaixonada do Plano, viu seu retumbante fracasso como uma derrota pessoal, e se isolou.

Culpava o Brasil, a falta de cumprimentos de acordos e os fisiologismos da política nacional pela derrocada do Cruzado. Depois de um período sabático, Conceição resolveu voltar ao jogo. Mas novamente a história a colocou no lado derrotado. Em 1994, a economista era uma das principais críticas do Plano Real, dizendo se tratar de um “Cruzado dos ricos”.

A história mostrou que Conceição estava errada nas duas ocasiões. Mas também mostrou que as críticas foram necessárias, e que a posição do Brasil nos índices mundiais de concentração de renda, inflação e taxa de juros mostram que quem a venceu não conseguiu provar que era o melhor caminho.
A economista Maria da Conceição Tavares e suas expressões marcantes. Não é "chá e simpatia" e "não se come PIB".
A economista Maria da Conceição Tavares e suas expressões marcantes. Não é "chá e simpatia" e "não se come PIB". / Foto: Leo Pinheiro

No mundo acadêmico, a economista publicou o ensaio “Além da Estagnação” que mostrava como o então ‘milagre econômico’ no Brasil era uma farsa, e que ele se alicerçava, de forma perversa, na concentração da renda. O ensaio é considerado um dos marcos da obra da autora dentro de seu período na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), órgão que defendia a adoção do planejamento econômico e de medidas protecionistas pelo Estado.

O ministro da Fazenda do período era outro economista brilhante e controverso: Delfim Netto. Sobre Conceição, Delfim resumiu em uma frase o respeito mútuo e os embates que tinham: “Nossos pensamentos frequentemente diferiam, mas sempre considerei as suas críticas. Foi a inteligência mais barulhenta que conheci”.

O epílogo

Desde 2021, Conceição morava em Nova Friburgo, região serrana do Rio. Levava uma vida tranquila, e longe do cigarro. Amigos, familiares — e os médicos — conseguiram convencê-la a largar um vício de mais de 70 anos. Mas, neste sábado (8), aos 94, a icônica economista se despediu deste plano. Morreu dormindo, durante a madrugada. Segundo a Folha de S.Paulo, jornal onde Conceição foi articulista, não haverá velório. Ela será cremada somente com a família presente.

Foi outro articulista da Folha de S.Paulo, o jornalista Danilo Thomaz, que escreveu um perfil de Conceição, publicado em outubro de 2022. No texto, Thomaz traz o evento da Unicamp, e relata como foi o início da sua fala, quando finalmente teve o controle total dos microfones (ou microfónes, na fonética conceitista):

“Conceição começou citando o romance "O Retrato de Dorian Gray", do escritor irlandês Oscar Wilde. No clássico, um aristocrata faz um pacto demoníaco para ter a juventude eterna, enquanto um quadro com seu retrato envelhece. A economista tinha o receio de que o Brasil terminasse como o aristocrata hedonista: horrorizado ao encarar o próprio retrato. No plano pessoal, seu receio era ter nascido em uma crise, na Europa, e morrer em outra, no Brasil — após toda uma vida contra a corrente”, disse Thomaz no perfil. 

Ao final, o jornalista traz uma das falas mais famosas de Maria da Conceição Tavares, compartilhadas exaustivamente desde que ela se transformou em fenômeno pop:

“Nós não somos da elite dominante desse país. A não ser que vocês tenham alguma pretensão a ser. Eu não tenho. Então não é chá e simpatia. Isso é um curso rebelde! Nós perdemos! Nós somos derrotados! Se vocês não fossem derrotados, não vinham para esta universidade [Unicamp], iam pra USP, pra PUC [Rio]. Ou pra Harvard. Estamos lutando pela hegemonia? Imagine! Estamos lutando apenas para não ficar malucos. Para não dizer besteira demais.”
A economista Maria da Conceição Tavares em seminário em 2003
A economista Maria da Conceição Tavares em seminário em 2003 / Foto: Roberto Stuckert Filho
Unanimidade? Imagine!
Conceição nunca fez questão de ser hegemônica, ortodoxa, simpática ou famosa. Muito menos buscava unanimidade. Mas deixa dois ensinamentos fundamentais que são atemporais e que certamente a mantém como persona non grata entre economistas e financistas:
Um economista que não se preocupa com a justiça social não é “sério”, mas um “tecnocrata”. E que “uma economia que diz que precisa primeiro estabilizar, depois crescer, depois distribuir, é uma falácia. E tem sido uma falácia. Nem estabiliza, cresce aos solavancos e não distribui. E esta é a história da economia brasileira desde o pós-guerra.”

O prestígio que certamente teria se seguisse a linha ortodoxa da economia e seguisse fielmente a “cartilha” recomendada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e das boas práticas em economia vindas do “Consenso de Washington”, poderia ter dado a Conceição uma vida muito mais tranquila.

Porém, Maria da Conceição Tavares preferiu a integridade e a certeza que economia não se faz apenas de lucros e números; se constitui enquanto uma ciência social. E que no mundo real não se deve tratar de “chá e simpatia”. Deve se tratar de justiça.

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