Edmundo Siqueira
14/03/2024 21:14 - Atualizado em 14/03/2024 21:16
O Solar dos Airizes, casarão às margens da BR 356 (Campos x São João da Barra), passou da condição de patrimônio esquecido para ser objeto de, pelo menos, três grandes projetos. São propostas distintas que envolvem o Solar, em fases diferentes de execução, e desenvolvidas por instituições independentes entre si.
A construção é repleta de simbolismos. Em Campos, o solar foi o primeiro imóvel a receber tombamento federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1940, a pedido do próprio Alberto Lamego, então proprietário do Solar. É tido por muitos como sendo o local de inspiração para o romance “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães.
Desde que foi tombado, o Solar já era sondado para abrigar um museu, para tratar de sua direta ligação com o período histórico das grandes fazendas de produção de cana-de-açúcar. Sem nenhuma dessas iniciativas acontecer, o solar foi abandonado. Em meados dos anos 1960, relatórios técnicos do Iphan já apontavam a necessidade de fazer intervenções na construção.
Com intervenções pontuais na década de 1970, foi só em 2003 que uma grande reforma no telhado foi feita por decisão do Iphan, o que garantiu sua sobrevida até aqui.
A quem pertence o Solar dos Airizes? A família Lamego segue como proprietária do solar e da fazenda dos Airizes. O bem que recebeu proteção do Estado Brasileiro é o próprio casarão e seu entorno, não abrange as terras.
Apesar de ser a proprietária, a família tem limitações de uso e venda do solar, uma vez que o tombamento não permite dispor da construção sem autorização do Iphan. Pelo abandono do prédio, os proprietários responderam ao órgão em diversos processos internos, onde pesadas multas foram impostas.
A família recorreu das penalidades, e conseguiu provar que não tinha condições financeiras para manter um patrimônio histórico como o Solar dos Airizes. Além do Iphan, o Ministério Público Federal (MPF) moveu ação para determinar o destino do casarão, processo que teve trânsito em julgado — quando não cabem mais recursos — em 2020 (trazido em primeira mão por esta coluna, aqui).
Com a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-2), a prefeitura de Campos passou a ser a responsável pela manutenção e restauro do Solar, e poder decidir sobre seu uso. A família Lamego já demonstrou interesse em fazer a doação para a prefeitura, o que ainda não aconteceu.
Prefeitura de Campos - A prefeitura de Campos protocolou junto ao Iphan um pedido de autorização para realizar o escoramento das partes mais críticas do prédio, e a construção de uma cobertura temporária em toda construção, como forma de tentar conter a ação do tempo e das chuvas, enquanto as obras de restauro não se iniciam.
Segundo fonte do Iphan, o projeto apresenta algumas pendências, mas com chances de aprovação. Com o projeto protocolado, a prefeitura iniciou o processo licitatório para as obras propostas no Solar, e nesta quarta-feira (13), o prefeito Wladimir Garotinho anunciou que a licitação já foi finalizada, e que dentro de 15 dias será iniciado o escoramento e a sobrecobertura do prédio histórico.
— A Prefeitura finalizou a licitação para início da restauração do Solar dos Airizes. Uma reivindicação muito antiga da comunidade de historiadores e de amantes da história da nossa cidade. Tem uma determinação judicial, inclusive, bem antiga, determinando que isso seja feito, mas nunca havia sido tomada nenhuma providência, e a Prefeitura agora conseguiu finalizar a licitação e, no máximo em 15 dias, será feito o escoramento e a cobertura de todo aquele prédio, para evitar que ainda se deteriore mais e para poder fazer a restauração — disse o prefeito em suas redes sociais.
Ferroport - Em maio de 2023, foi assinado um protocolo de intenções entre o município de Campos e a empresa Ferroport, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. O objetivo da parceria era achar soluções conjuntas para o Solar dos Airizes.
Além do protocolo de intenções, a prefeitura editou a Portaria nº 952, de 16 de maio de 2023, que criou um Grupo de Trabalho específico para a realização de estudos relativos à restauração do patrimônio.
A Ferroport acompanha o andamento desse grupo de trabalho, liderado pela prefeitura, que tem a missão de elaborar um projeto de restauração para o Solar e seu entorno, onde também seriam definidos os usos para o patrimônio.
A promessa é que tão logo esse projeto seja aprovado pelo Iphan e pelo Ministério da Cultura, poderá receber os recursos vindos da Lei Rouanet, e dentro dos parâmetros do programa, serem aplicados pela Ferroport nos próximos anos.
Sabra - Em paralelo ao projeto da prefeitura de escoramento e sobrecobertura, e do grupo de trabalho criado a partir do protocolo de intenções, a associação mineira “Sociedade Artística Brasileira – Sabra”, conseguiu aprovar junto ao Iphan um outro projeto para restauro para o Solar dos Airizes.
O projeto da Sabra também foi aprovado para ser utilizado via Lei Rouanet, onde está apto a captar 100% do valor que foi proposto: exatamente R$ 28.410.937,55. Para que os recursos sejam aplicados, empresas interessadas podem atuar como financiadoras, tendo o valor correspondente compensado nos impostos devidos.
Iphan - A autarquia federal é a responsável pelo tombamento e proteção do Solar dos Airizes. O processo iniciado nos anos 1940, que teve participação direta do modernista Mário de Andrade, dentre outras figuras importantes do Brasil, confere ao Iphan a tutela do bem, por seu valor histórico e cultural de relevância nacional.
Todos os projetos que envolvem o Solar devem possuir o aval do Iphan, mesmo que intervenham minimamente na construção e no seu entorno. O órgão sofreu duras baixas nos últimos anos, mas começa a recuperar sua força de trabalho, e realiza visitas e vistorias em Campos, cada vez mais frequentes.
Por que restaurar? Construído no início do século XIX, sob encomenda do Comendador Claudio do Couto e Souza, à margem direita do rio Paraíba, o sobrado, de grandes proporções e inspiração neoclássica, típico das fazendas de Campos do período Imperial, possui dois pavimentos, sendo o primeiro um porão alto.
O Airizes tem sua planta em formato de “U”, com a fachada distribuída simetricamente. Com extensão de 45 metros, possui na face principal “cinco grandes janelas em arco pleno, com raios em madeira, e três estreitas sacadas com grades de ferro”, como descreve o arquiteto Humberto Chagas.
No interior do Solar, funcionava a Biblioteca e o Arquivo Alberto Lamego, onde diversas obras raras eram guardadas, assim como mapas, documentos históricos e fotografias. Esse rico acervo foi adquirido por um museu em São Paulo. No interior do Airizes também existia uma significativa quantidade de telas dos mais variados artistas, como Both, Poussin, Taunay, Sanzio, Teniers, Savery, Jan Steen, entre outros. Essa pinacoteca pertence hoje ao Museu Ary Parreiras, em Niterói.
Restaurar o Solar dos Airizes não representa apenas uma obrigação histórica, cultural, moral e jurídica. Salvar as paredes alvenaria autoportante de adobe, tijolos cerâmicos maciços e madeira de lei, construída com mão de obra escravizada, significa fazer com que Campos e região se depare com sua própria história — e aprenda com ela.