20 de novembro: as flores de luta do quilombo do Leblon
Edmundo Siqueira 20/11/2023 18:17 - Atualizado em 20/11/2023 18:29
Grupo em torno da princesa Isabel e do conde D’Eu, na missa campal de 17/05/1888, no Campo de São Cristóvão celebrando a abolição. Com presença de Machado de Assis, José do Patrocínio escondido pela posição da foto atrás de um estandarte e segurando a mão de seu filho, então com três anos.
Grupo em torno da princesa Isabel e do conde D’Eu, na missa campal de 17/05/1888, no Campo de São Cristóvão celebrando a abolição. Com presença de Machado de Assis, José do Patrocínio escondido pela posição da foto atrás de um estandarte e segurando a mão de seu filho, então com três anos. / Biblioteca Nacional
A lei que a princesa regente Isabel assinou, em maio de 1888, não foi um ato de benevolência, como parte da historiografia tentou vender. A abolição foi resultado de luta e sangue das pessoas escravizadas que viviam no Brasil Império, e de intelectuais que resistiam àquela situação degradante que o país teimava em manter.

O governo da ocasião, configurado como uma monarquia constitucional, tentava alternativas reformistas — como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários — mas havia em parte da sociedade, principalmente na capital Rio de Janeiro, dois sentimentos que passaram a se tornar manifestos: medo e vergonha. O medo compreensível da reescravização e a vergonha de viver em um país que ainda permitia alguém ser proprietário de outro alguém.

Medo e vergonha que se transformaram em ação. Revoltas aconteciam em todo país, células abolicionistas transformaram-se em quilombos e multiplicavam-se as publicações jornalísticas focadas nos movimentos republicanos e abolicionistas. No Rio, foram formados, entre outros, o quilombo Raimundo, no Engenho Novo; o Miguel Dias, no Catumbi; o Padre Ricardo, na Penha; e o quilombo Clapp, na praia de São Domingos.

E onde hoje é o metro quadrado mais caro da cidade do Rio de Janeiro (nada menos que R$ 22.445,00 em agosto deste ano, segundo o Índice Fipe), o bairro Leblon, existia um quilombo icônico instalado em uma chácara de propriedade de um comerciante português influente. Com ideias avançadas para a época, José de Seixas Magalhães abrigava escravizados que fugiam ou que entravam para a resistência.

A Casa Seixas e Cia. funcionava na rua Gonçalves Dias, onde elegantes casarios abrigavam cafés, hospedarias e casas comerciais. Lá estava o armazém de seu José de Seixas, idealizador proclamado do quilombo do Leblon. No comércio eram vendidos malas e sacos de viagem, mas a chácara abrigava algo de simbolismo e importância muito maiores.

As camélias como símbolo — No então subúrbio à beira mar do Leblon, o quilombo do “Seixas das malas” cultivava uma flor chamada camellia japonica — ou simplesmente camélia. Segundo Eduardo Silva, no artigo “Rui Barbosa e o quilombo do Leblon - uma investigação de história cultural”, aquela era uma flor “relativamente rara no Brasil, introduzida no Rio fazia uns 60 anos, se tanto”.
Reprodução.
— Exatamente como a liberdade que se pretendia conquistar, a camélia não era uma flor dessas comuns, naturais da terra e encontradiças soltas na natureza. Era, pelo contrário, uma flor delicada, especial, nova, estrangeira, cheia de melindres com o sol, que requeria ambiente, know-how, relações de produção, técnicas de cultivo e cuidados muitíssimo especiais. Para cuidar das camélias, somente um trabalhador livre de todas as amarras. Em l897, quase dez anos depois da Abolição, o poeta Olavo Bilac ainda contrapunha as "flores da mata", a nossa natureza comum daqui mesmo, às sofisticadas camélias, símbolos de refinamento e civilização. “Aí tens tu, leitor amigo, as flores da mata... Se não as queres, aqui tens as camélias”.

O comerciante Seixas era amigo dos maiores abolicionistas do Rio e do Brasil, e certa vez, por ocasião de seu aniversário, estiveram reunidos no quilombo das camélias — ou quilombo do Leblon — Joaquim Nabuco, João Clapp, o campista José do Patrocínio e muitos outros abolicionistas.

Mas o quilombo não tinha apenas a função comercial e de reuniões abolicionistas. As camélias produzidas no Leblon passaram a ter um valor essencial para a causa da abolição: ela se transformou em um símbolo.
Quem era visto com uma camélia na lapela, logo era identificado como abolicionista.

O simbolismo das camélias ficou tão forte que não pretendia ser escondido ou viver na clandestinidade. Na subscrição popular pode ser encontrada tanto a existência do quilombo do Leblon como a oferta por Seixas de uma pena de ouro à Princesa Regente Isabel, para que ela assinasse a lei da Abolição.
Dia da Abolição - 13 de maio de 1888.
Dia da Abolição - 13 de maio de 1888. / Biblioteca Nacional
As referências da origem da "pena de ouro" de Isabel não são consensuais, mas não era de se estranhar que de fato tenha vindo do influente comerciante do Leblon. Seixas, não tinha apenas a cumplicidade dos grupos abolicionistas do Rio, mas contava com a proteção da própria princesa. As camélias do quilombo eram fornecidas regularmente ao Palácio das Laranjeiras, hoje sede do governo do Estado, e enfeitavam a mesa de trabalho da Princesa Isabel e sua capela particular. Dizem que para lá iam as mais belas camélias do quilombo do Leblon.

Desconstruir o racismo — Embora Isabel não tenha sido benevolente, ela foi uma figura essencial para que o Brasil chegasse ao 13 de maio de 1888. Figuras abolicionistas importantes foram fiéis à princesa até o fim, como José do Patrocínio. Mas o que determinou que a nação, ainda que tardiamente, abolisse a escravidão, foi principalmente a luta de pessoas escravizadas.

Mas os reflexos desse período são visíveis ainda hoje. Os dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) sobre o encarceramento, informam que em 2022 havia 442.033 negros encarcerados no país, ou 68,2% do total das pessoas presas.

Nas eleições de 2022, o número de negros eleitos para a Câmara dos Deputados bateu recorde: 135. Porém, esse é um percentual muito pequeno de representação, onde apenas 26% do total de parlamentares são pessoas pretas.

De acordo com projeção recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como os números atuais de juízes negros no Brasil (identificam-se como pessoas pretas apenas 1,7% dos magistrados e magistradas) levaremos 30 anos para que ter — apenas — 20% de pessoas pretas na magistratura.

Esses são apenas alguns dados do que a academia chama de "racismo estrutural" no Brasil. Os espaços de poder são ocupados majoritariamente por pessoas brancas e acontece exatamente o contrário nos locais de vulnerabilidade social. E isso é visto com naturalidade.

É preciso construir novos símbolos para desconstruir essa realidade. Não se combate violência com flores, mas mudam-se realidades através de símbolos e de pessoas. São lutas constantes — de todos.



 

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