Penha e Luiza: Cortes Internacionais atuam no silêncio legislativo e na letargia do judiciário brasileiro
Edmundo Siqueira 19/10/2023 20:44 - Atualizado em 19/10/2023 20:52
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O dia 28 de maio de 1983 ficaria marcado tragicamente na história da mulher que ficou conhecida no Brasil como Maria da Penha. Nesse dia, enquanto dormia na sua casa em Fortaleza, cidade onde nasceu e foi criada, Penha foi atingida por dois tiros disparados pelo seu próprio marido. Enquanto sentia o gosto metálico do sangue em sua boca, e percebia que suas costas estavam gravemente feridas, a cearense tentava ficar imóvel para que seu companheiro desistisse de alvejá-la novamente. Não foi o bastante. Penha levou outro tiro e ficou paraplégica aos 38 anos.

Em 2002, Luiza Melinho, mulher trans, conseguiu o valor necessário para realizar uma cirurgia de redesignação sexual, que esperava desde 1997. Melinho tentou realizar o procedimento no Hospital das Clínicas da Unicamp, em São Paulo, mas foi negado, apesar do indicativo positivo do programa de adequação sexual. Após uma segunda tentativa, e ainda sem conseguir arcar com os custos do procedimento, ela relata que passou quatro anos sem possibilidade de uma vida digna e com riscos à sua integridade física. Melinho sofreu de depressão, ansiedade e tentou cometer suicídio.

Em ambos os casos a legislação que estava em vigência quando os fatos aconteceram não foram suficientes para coibir os atos criminosos, tampouco puni-los adequadamente. No caso de Maria da Penha, a Justiça de Fortaleza chegou a condenar seu algoz, porém, mesmo como réu condenado pelo crime, levou mais de quinze anos em liberdade, valendo-se de sucessivos recursos processuais. A impunidade fática motivou que o caso fosse levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA).

A Comissão Interamericana, em decisão inédita de 2001, afirmou que o Estado brasileiro havia violado os direitos humanos de Maria da Penha, depois de 18 anos da prática do crime, por negligência e omissão em relação à violência doméstica sofrida pela vítima. No caso de violência envolvendo Luiza Melinho, a Comissão Interamericana tornou o Brasil réu perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tribunal que tem jurisdição para julgar violações de direitos humanos cometidas pelo Brasil, no último dia 14 de setembro, em um caso inédito sobre o direito à cirurgia de redesignação sexual de pessoas trans.

O papel da Corte na omissão do legislativo e do judiciário
— A Comissão Interamericana colocou o Brasil no banco dos réus da Corte Interamericana no caso Luiza Melinho vs. Brasil. Trata-se do primeiro caso a respeito de cirurgias de redesignação sexual para pessoas trans no sistema interamericano e o primeiro caso contra o Brasil envolvendo essa minoria. Segundo o relatório da Comissão, o Estado brasileiro falhou ao não garantir à vítima o acesso à saúde em condições de igualdade, levando em conta também sua condição de vulnerabilidade. A Comissão também destacou a demora judicial de cinco anos e meio para o julgamento do seu caso pelas cortes nacionais. Tudo isso, prejudicou o direito de Luiza Melinho de definir de maneira autônoma sua identidade de gênero — disse a advogada Victoria Vormittag, especialista em direitos LGBTQIA+ e direito internacional dos direitos humanos, que foi coordenadora do Núcleo de Estudos Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).


Falando a este espaço na Folha1, Vormittag explica que “as partes, tanto a vítima quanto o Brasil, serão ouvidas novamente no âmbito do sistema interamericano, desta vez perante a Corte, que poderá “condenar, ou não, o país pela violação dos direitos humanos de Luiza Melinho”.

— O tema é de extrema importância e urgência, além de ser prato cheio para interpretações sensacionalistas dos críticos do tribunal e do governo, e o julgamento internacional soma a mais pressão a esse cenário com as repercussões internacionais dos direitos humanos das pessoas trans.

Na primeira vez que Melinho recorreu ao SUS para a cirurgia, não era oferecido o procedimento — o que só aconteceu a partir de 2013. Em 2008, o Ministério da Saúde decidiu que iria adotar a redesignação sexual em sua rede de atendimento. O caso dela ainda foi apreciado pela Justiça de São Paulo, mas a foi derrotada na ação que movia para cobrar o Estado brasileiro que se responsabilizasse por situações como a dela.

No tribunal internacional, Luiza Melinho é representada pelo advogado Thiago Cremasco, que levou o tema para a CIDH em 2008. Também a defendem a Justiça Global e entidades ligadas à causa LGBT+, como a ANTRA, a ABGLT e a ABMLBTI.

Mudanças após as ações na Corte — As recomendações da Comissão Interamericana ao Brasil no caso Maria da Penha levaram a mudanças na legislação nacional sobre a violência contra as mulheres, sendo criada a  Lei nº 11.340 de 2006, visando coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

A Lei foi declarada constitucional e se baseia em princípios da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A criação do dispositivo legal foi um marco no Brasil, mostrando como a atuação de organismos internacionais podem e devem agir em questões de Direitos Humanos.

O caso Luiza Melinho vs. Brasil também poderá servir de base para que o país crie as condições legais para que violências contra pessoas trans sejam coibidas de forma mais efetiva. Embora não possua o poder de legislar, órgãos de Direito Internacional são fundamentais para que temas relacionados aos Direitos Humanos sejam tratados de maneira efetiva.

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