Em 2002, Luiza Melinho, mulher trans, conseguiu o valor necessário para realizar uma cirurgia de redesignação sexual, que esperava desde 1997. Melinho tentou realizar o procedimento no Hospital das Clínicas da Unicamp, em São Paulo, mas foi negado, apesar do indicativo positivo do programa de adequação sexual. Após uma segunda tentativa, e ainda sem conseguir arcar com os custos do procedimento, ela relata que passou quatro anos sem possibilidade de uma vida digna e com riscos à sua integridade física. Melinho sofreu de depressão, ansiedade e tentou cometer suicídio.
Em ambos os casos a legislação que estava em vigência quando os fatos aconteceram não foram suficientes para coibir os atos criminosos, tampouco puni-los adequadamente. No caso de Maria da Penha, a Justiça de Fortaleza chegou a condenar seu algoz, porém, mesmo como réu condenado pelo crime, levou mais de quinze anos em liberdade, valendo-se de sucessivos recursos processuais. A impunidade fática motivou que o caso fosse levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA).
A Comissão Interamericana, em decisão inédita de 2001, afirmou que o Estado brasileiro havia violado os direitos humanos de Maria da Penha, depois de 18 anos da prática do crime, por negligência e omissão em relação à violência doméstica sofrida pela vítima. No caso de violência envolvendo Luiza Melinho, a Comissão Interamericana tornou o Brasil réu perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tribunal que tem jurisdição para julgar violações de direitos humanos cometidas pelo Brasil, no último dia 14 de setembro, em um caso inédito sobre o direito à cirurgia de redesignação sexual de pessoas trans.
O papel da Corte na omissão do legislativo e do judiciário
Falando a este espaço na Folha1, Vormittag explica que “as partes, tanto a vítima quanto o Brasil, serão ouvidas novamente no âmbito do sistema interamericano, desta vez perante a Corte, que poderá “condenar, ou não, o país pela violação dos direitos humanos de Luiza Melinho”.
— O tema é de extrema importância e urgência, além de ser prato cheio para interpretações sensacionalistas dos críticos do tribunal e do governo, e o julgamento internacional soma a mais pressão a esse cenário com as repercussões internacionais dos direitos humanos das pessoas trans.
Na primeira vez que Melinho recorreu ao SUS para a cirurgia, não era oferecido o procedimento — o que só aconteceu a partir de 2013. Em 2008, o Ministério da Saúde decidiu que iria adotar a redesignação sexual em sua rede de atendimento. O caso dela ainda foi apreciado pela Justiça de São Paulo, mas a foi derrotada na ação que movia para cobrar o Estado brasileiro que se responsabilizasse por situações como a dela.
No tribunal internacional, Luiza Melinho é representada pelo advogado Thiago Cremasco, que levou o tema para a CIDH em 2008. Também a defendem a Justiça Global e entidades ligadas à causa LGBT+, como a ANTRA, a ABGLT e a ABMLBTI.
Mudanças após as ações na Corte — As recomendações da Comissão Interamericana ao Brasil no caso Maria da Penha levaram a mudanças na legislação nacional sobre a violência contra as mulheres, sendo criada a Lei nº 11.340 de 2006, visando coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A Lei foi declarada constitucional e se baseia em princípios da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A criação do dispositivo legal foi um marco no Brasil, mostrando como a atuação de organismos internacionais podem e devem agir em questões de Direitos Humanos.
O caso Luiza Melinho vs. Brasil também poderá servir de base para que o país crie as condições legais para que violências contra pessoas trans sejam coibidas de forma mais efetiva. Embora não possua o poder de legislar, órgãos de Direito Internacional são fundamentais para que temas relacionados aos Direitos Humanos sejam tratados de maneira efetiva.