Massa ou Milei? Os desafios complexos de um país intrincado, com Danilo Thomaz
Edmundo Siqueira 10/11/2023 21:25 - Atualizado em 10/11/2023 21:35
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“Entre os países que são um caso à parte, a Argentina talvez seja quase uma esfinge”, é como definiu o jornalista, pesquisador e mestrando em Ciência Política, Danilo Thomaz, o país vizinho. Uma esfinge traz a ideia de um ser mitológico, representado com corpo de leão e rosto humano, trazendo enigmas e devorando quem não os conseguisse decifrar.

No próximo dia 19, a pouco mais de uma semana, os eleitores dessa complexa Argentina decidirão seu próximo presidente. A escolha se dará entre um ministro da Economia, representante da continuidade, que surpreendeu ao sair vitorioso no primeiro turno, e um controverso libertário que representa ruptura total, e propõe ideias ultraliberais.

Sergio Massa, o candidato-ministro, recebeu 36,7% dos votos no domingo (22/10) contra os quase 30% de Javier Milei, o candidato antissistema. Milei estava cotado como favorito, mas Massa foi favorecido pelas polêmicas que o adversário protagonizou, até com o Papa Francisco (Milei disse que Francisco “tem afinidade pelos comunistas assassinos”).
Porém, mesmo ofendendo o Papa em seu país de origem, e que possui ampla maioria católica (62,9% dos argentinos declararam-se católicos em 2019), Milei aparece na frente das pesquisas  nesse segundo turno.

Javier Milei, da coligação “La Libertad Avanza”, lidera as intenções de votos úteis do segundo turno com 52,1%, e o candidato Sergio Massa, da “Unión por la Patria”, aparece com 47,9%, segundo a última pesquisa Atlas Intel, divulgada nesta sexta-feira (10).
“Mesmo quem estuda a Argentina tem muita dificuldade de compreendê-la”, afirmou Danilo Thomaz na condição de jornalista e de alguém que estuda e pesquisa o tema “Argentina” e “América Latina” há bastante tempo. Thomaz é colaborador em publicações como a Folha de S. Paulo, Piauí e Valor Econômico, e já atuou em veículos internacionais como o Fumaça de Portugal, no espanhol Contexto, e no Le Monde Diplomatique, da França.

Thomaz explica que “em que pese os problemas econômicos, em especial a inflação, bastante elevada, o desemprego é menor que o brasileiro (abaixo de 7%), e há a política de subsídios e valorização do salário mínimo para conter a inflação”. Isso poderia ter favorecido Massa no primeiro turno, além do fato de, segundo ele, “o povo conhecer também o setor liberal na Argentina e sabe que seu compromisso popular é zero”.

O jornalista lembra que é preciso avaliar os impactos da crise Israel-Palestina e que o alinhamento dos eleitores da terceira colocada, Patrícia Bullrich, com Milei “não é direto assim”. Thomaz aposta “numa vitória apertada de Massa, como ocorreu com Lula no Brasil e outros candidatos de centro-esquerda na América Latina recentemente”, e explica o porquê. Confira:

Edmundo Siqueira (Folha1) - Embora a Argentina seja um país influenciado pelo contexto da AL, é um país com características próprias, muito específicas. O que levou Massa a vencer o primeiro turno com a economia argentina em frangalhos, sendo ele representante máximo da continuidade nessa área?

Danilo Thomaz
- Todo país é influenciado pelo contexto global e local e tem suas características próprias. Argentina, Brasil… Mas concordo que, entre os países que são um caso à parte, a Argentina talvez seja quase uma esfinge. Mesmo quem estuda a Argentina tem muita dificuldade de compreendê-la. Essa questão tem várias respostas. Primeiramente, é preciso compreender que, ao mesmo tempo que há uma crise econômica no atual governo do peronista moderado Alberto Fernandéz, do qual Massa é ministro da Fazenda, há também uma memória recente dos anos do liberal Mauricio Macri, onde as condições argentinas se deterioraram muito. Já havia um aumento da inflação no segundo governo Cristina Kirchner (2011-15), mas dentro de uma relativa estabilidade: a dívida do país estava estabilizada após a renegociação com a maior parte dos credores, a situação do emprego e havia muitos subsídios, como à luz e ao transporte, que amparavam a situação social. Com Macri, tudo isso se perdeu. Não por acaso, os peronistas voltaram, com Fernandéz presidente e Cristina vice.


Em que pese os problemas econômicos, em especial a inflação, bastante elevada, o desemprego é menor que o brasileiro (abaixo de 7%), há a política de subsídios e valorização do salário mínimo para conter a inflação, o que dá um amparo aos setores populares e o receio disso se perder. Parte da estratégia eleitoral foi justamente focar nessa política de redução de danos, o que, parece, surtiu efeito. Mas o povo conhece também o setor liberal na Argentina e sabe que seu compromisso popular é zero.

Edmundo - Milei usou uma estratégia conhecida de políticos dessa nova onda de populismo de direita: redes sociais, declarações polêmicas e estridência. No caso do Milei uma adesão ao ideal libertário. O voto que ele recebeu foi de revolta ou de esperança em uma virada radical na Argentina?

Thomaz - Difícil separar. Milei ascende num contexto em que as duas alternativas majoritárias - os peronistas e os liberais, representados pela Unión Civica Radical, de Macri e Bullrich — já foram testadas e não tiraram o país dessa situação. Mas a onda Milei tem suas limitações. Tem um piso alto e um teto baixo. E suas propostas econômicas não são consensuais. Sua proposta de dolarização, segundo o Atlas Intel, tem uma aprovação semelhante à sua (em torno de 1⁄3 do eleitorado). Imagino que isso se dê pela memória da crise de 2001, quando os argentinos tiveram seu dinheiro congelado. É bom lembrar que, na Argentina, ao contrário do Brasil, a estabilização econômica nos anos 90 foi feita com base numa semidolarização da economia. Era possível, por exemplo, poupar em dólar.
Tudo foi bem enquanto havia ingresso de dólares para sustentar esse “eldorado”. Por isso eles venderam todo o patrimônio público – todo mesmo –, abriram a economia de maneira muito violenta e corroeram o aparato estatal e produtivo do país. Para sustentar essa semidolarização. Quando não tinha mais o que vender e já não havia meios de sustentar a paridade peso-dólar, que estava determinada pela lei (!), a crise explodiu.

A situação se estabilizou com os Kirchner, muito graças ao ‘boom’ de commodities. Eles conseguiram orientar bem as políticas nesse período: renegociaram com os credores externos, buscaram, no possível, fortalecer o setor produtivo, reestatizaram empresas estratégicas. A Argentina cresceu em média 8% no período, enquanto o Brasil cresceu 4%. Mas já era um país muito mais vulnerável.
Foto: Juan Mabromata, Luis Robayo / AFP
Edmundo - A terceira colocada recebeu muitos votos do chamado anti-peronismo, e de alinhamento na direita. A tendência seria uma migração de seus votos para Milei. Porém o argentino é alguém acostumado e resistente a crises econômicas. Você avalia que o eleitor de Patrícia Bullrich irá apostar em Milei ou optar pela institucionalizado?

Thomaz - As pesquisas têm mostrado que o alinhamento não é direto assim. E Milei, assustado com a votação, tem sido menos “Milei”, o que, para o tipo de político que ele é, é ruim como estratégia eleitoral. Acredito que quem vai decidir a eleição não é tanto o eleitorado liberal que votou em Bullrich, mas sim os eleitores que não votaram (25%). Acredito numa vitória apertada de Massa, como ocorreu com Lula no Brasil e outros candidatos de centro-esquerda na AL recentemente. Isso não significa, todavia, uma saída para a crise argentina.

Precisamos ver também o impacto da crise Israel-Palestina sobre o país. A Argentina tem uma população judia muito grande, segundo se projeta é a sexta maior do mundo. Não creio que haverá, dada a conjuntura interna extremamente grave, mas já houve um atentado islâmico contra a sede de uma organização israelita no país e volta e meia buscam ligar os peronistas aos grupos islâmicos.

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