No último domingo, o centro do poder no Brasil foi invadido, destruído e muitos símbolos nacionais foram vilipendiados. Um dos manifestantes — grupo que vem sendo classificado como terrorista — defecou no Supremo Tribunal Federal, outros vibraram com a ideia de estar participando de um golpe de estado. Vidraças e mobiliários foram quebrados, documentos destruídos, obras de arte de valor incalculável foram danificadas, e gente saiu ferida aos montes.
Tragédia. Anunciada, planejada e financiada. E apoiada por parte das forças de segurança do Distrito Federal. O quebra-quebra do último domingo começou quando o primeiro brasileiro levantou acampamento em frente a um quartel e lá pediu que as Forças Armadas aplicassem um golpe de estado. Totalmente ilegal, altamente estimulante para que outros se juntassem com o mesmo propósito: subverter a República.
Uma das definições aceitas de terrorismo dá a exata medida do que aconteceu em Brasília: “emprego sistemático da violência para fins políticos e ideológicos por indivíduos ou grupos, cujo objetivo é a desorganização da sociedade existente e a tomada do poder”.
Terroristas ou não, os brasileiros que tentaram destruir a República no domingo não se contentaram em quebrar o patrimônio público de vidro e alvenaria. O quadro “Mulatas” do artista brasileiro Di Cavalcanti foi mutilado, “O Flautista” de Bruno Jorge, e um Krajcberg foram vandalizados.
Anita Malfatti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Alfredo Ceschiatti são ilustres desconhecidos não apenas pelos bolsonaristas, mas como da maioria do povo brasileiro. Por motivos diferentes, em um país de desigualdade pornográfica, mas são artistas festejados em todo mundo e por aqui são depredados sem qualquer pudor.
O bolsonarismo, principalmente o radical-golpista, não sabe o que é o Brasil, não faz ideia do que esses artistas e suas obras falam sobre o país que moram. Para esse movimento — que milhões de brasileiros se identificam —, Paulo Freire, Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro são inimigos.
O Brasil de verdade é essencialmente miscigenado e grandiosamente inclinado à arte e cultura. A construção do “brasileiro ideal” não é factível. O Integralismo — movimento fascista brasileiro dos anos 1930 — tentou, queria um bandeirante, um desbravador, como imagem. Não conseguiu. A literatura e a academia também tentaram criar no imaginário do brasileiro sua imagem e semelhança, mas a pluralidade sempre ganhava.
Gênios como Machado de Assis, Mário de Andrade e Drummond escreveram a beleza da miscigenação, souberam captar os regionalismos e as particularidades que davam identidade ao brasileiro. A Semana de Arte Moderna de 1922 e a efervescência dos anos 1950 e 60 foram resultado e produziram outros tantos brasileiros geniais.
Nesse período, Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer procuraram a centralidade em Brasília, que foi construída e sustentada numa ideia daquele Brasil que era visível para todos que festejavam Pelé, que estavam fazendo samba, música erudita, teatro, Cinema Novo, etc. Aquele Brasil foi decepado em 1964, em um golpe de estado, daquela vez exitoso. Violência, tortura e repressão provocaram o sufocamento do país e um enorme e visível emburrecimento. O Brasil se perdeu ali.
A tragédia do domingo último, cópia burlesca e anti-carnavalesca, do golpismo também tragicômico americano, de dois anos passados, quando o Capitólio foi invadido e igualmente depredado, revela que os brasileiros não conseguiram se reencontrar depois da ditadura.
O autodesconhecimento é trágico; mas reversível. A distopia que muitos brasileiros resolveram abraçar, ao ponto de tentar quebrar a democracia com paus, pedras e ignorância, precisa ser contida, no entanto.