A crise das democracias modernas e seus renascimentos
Em 2006, a revista britânica The Economist, em circulação desde 1843, elaborou o “índice de democracia”, onde os países pudessem ser enquadrados em quatro classificações: democracias plenas, democracias imperfeitas, regimes híbridos ou regimes autoritários.
O Brasil teve piora no índice, em 2021. No relatório da Economist, as posições de Bolsonaro foram determinantes para o rebaixamento. “O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, exigiu a renúncia de dois membros do Supremo Tribunal Federal (...) ainda questionou a integridade do sistema eletrônico de votação, apesar de não haver nenhuma evidência de fraude”, trouxe o relatório.
A publicação considera cinco critérios principais de avaliação da democracia: processo eleitoral e pluralismo; funcionamento do governo; participação política; cultura política; e liberdades civis. As notas vão de 0 a 10. Na última avaliação, a melhor nota do Brasil foi em “processo eleitoral e pluralismo” (9,58) e a pior em “funcionamento do governo” (5,36).
O Brasil é classificado como uma “democracia imperfeita" no índice da revista.
Como as democracias morrem
Daniel Ziblatt e Steven Levitsky são professores de ciência política de Harvard. O professor Levitsky sempre focou seus estudos na América Latina e em países em desenvolvimento. Ziblatt é um estudioso profundo da Europa do século XIX.
Quando esses festejados professores ficaram diante de uma ameaça real da democracia mais longeva do mundo, a dos EUA, resolveram unir seus conhecimentos para escrever um livro que viria a se tornar uma referência mundial: “Como as democracias morrem”.
A ameaça nos EUA estava resumida em um homem — Donald Trump, então presidente do país. Assim como Bolsonaro, Trump atuava politicamente no conflito institucional e estimulava a polarização extremada na população.
Os Estados Unidos foram rebaixados à condição de “democracia imperfeita” pela The Economist. Em 6 de janeiro de 2021, as piores previsões foram superadas quando o Capitólio, sede do legislativo americano, foi invadido por uma turba de apoiadores do então presidente Trump, estimulada por ele em pronunciamento público.
Por lá, continuam absorvendo o significado da insurreição ocorrida em 6 de janeiro de 2021, que foi uma tentativa de reverter o resultado da eleição do ano anterior. O país realiza eleições presidenciais desde 1789, quando elaborou uma Constituição utilizada até os dias atuais, religiosamente respeitada pelos americanos. Porém, mais de 230 anos depois, viram o sistema ameaçado.
A eleição é parte fundamental da democracia. Mas não se resume apenas na realização de um processo eleitoral. As eleições precisam ser amplas, livres, pacíficas e possibilitarem condições igualitárias de participação dos representantes. As regras devem servir para todos e ser respeitadas por todos. Países como a Venezuela realizam eleições periódicas, mas não apresenta as condições para ser considerada uma democracia, sendo classificado como um regime autoritário — uma ditadura.
Mais que realizar eleições, um país precisa de governantes que consigam fazer a transição pacífica de poder. A democracia precisa de representantes públicos que respeitem as regras pactuadas anteriormente — sejam constitucionais, ou infraconstitucionais. Os resultados eleitorais devem ser aceitos, e usar de força e violência para impor uma vitória que não existe acaba se tornando um dos principais pontos de rompimento democrático.
Governantes como Trump e Bolsonaro precisam manter a militância sempre em alerta máximo, sempre pronta para reagir a alguma “injustiça”. A guerra cultural constante e a ideia de que o líder populista é alguém ungido por Deus para ocupar a cadeira, acaba por levar à violência pós-eleitoral, a insurreições, a exemplo do que os apoiadores do ex-presidente Trump fizeram quando invadiram o Capitólio e semearam dúvidas sobre a legitimidade do resultado eleitoral.
Produzir um sistema democrático sólido não se trata apenas de elaborar leis, depende de candidatos e apoiadores que possam agir de forma responsável durante todo o processo eleitoral.
A capacidade de fazer promessas
A complexidade da definição de democracia passa pelo acordo pactuado em uma comunidade, das regras que estabelecem por meio da palavra — escrita e falada. A efetividade de uma democracia reside em parte na capacidade que uma sociedade tem em fazer e cumprir as promessas coletivas.
Desde de John Locke, filósofo inglês conhecido como o “pai do liberalismo” e um dos principais nomes do século XVII, até Hannah Arendt, filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX, as relações da democracia com essas “promessas” feitas coletivamente são pontos de preocupação.
A fragilidade dos sistemas democráticos está na ausência de mecanismos de proteção eficientes contra os que promovem rompimentos dessas promessas deliberadamente e através de representações públicas.
O que os autores de “Como as democracias morrem” perceberam é que os rompimentos democráticos modernos não acontecem necessariamente nos moldes de golpes militares como os que ocorreram no Brasil em 1964, ou no Chile em 1973. O que é visto nas mortes das democracias modernas é uma corrosão lenta, muitas vezes por meio de processos legalmente legítimos, que corrompem os mecanismos de defesa da própria democracia, tornando-os não efetivos o suficiente para impedir a chegada de demagogos-autoritários ao poder.
O que confere o caráter político e democrático a uma sociedade é, para Locke, o conhecimento das leis morais; para Arendt, é a própria capacidade de fazer promessas. Ziblatt e Steven Levitsky entendem que para as democracias sobreviverem, as instituições precisam funcionar a ponto de impedir que os “operadores da máquina” a destruam por dentro.
O que se sabe além disso é que a política não começa com o Estado e nem termina com ele. Contratos e promessas coletivas não podem ser impostos como um verticalmente, como um pacto de submissão. Assim sendo o regime passa a ser imperial, onde os contratantes entregam seu poder a um terceiro, normalmente sob égide religiosa.
As democracias supõem um contrato horizontal, de aceitação mútua de promessas, que dependem do consentimento explícito — feito em juramentos perante a bandeira, no interior do Congresso —, dos governantes eleitos.
O renascimento antes da morte
Brasil e EUA parecem ter garantido suas democracias quando conseguiram impedir a reeleição de representantes da demagogia autoritária. Bolsonaro e Trump atuaram no rompimento das promessas e leis morais desde que assumiram suas cadeiras. A história recente de países como Venezuela, Rússia e Hungria demonstram que esse perfil de governante consegue corroer a democracia definitivamente no segundo mandato.
Os autores de “Como as democracias morrem” mencionam o caso da Hungria e da Rússia para exemplificar casos recentes de rompimento democrático. Viktor Orbán, na Hungria, alterou a composição de vários órgãos supostamente independentes, inclusive a própria Corte Constitucional. Na Rússia de Vladimir Putin, o governo utilizou autoridades fiscais para prender e calar veículos de mídia e grandes empresários que se opunham ao seu governo.
O segundo mandato de governantes como Bolsonaro, Trump, Orbán e Putin serve para a perpetuação no poder — deles próprios ou de um regime antidemocrático. Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, propuseram antes mesmo do fim do segundo turno das eleições, alterar o número de cadeiras da Suprema Corte brasileira.
O elemento central de propostas como alterar a composição do STF, ou de questionar o sistema eleitoral, servem ao objetivo de subverter o regime democrático e tentar mudar as regras do jogo a favor do governante. Isso pode ser feito através de reformas das instituições, do sistema eleitoral ou da Constituição, que muitas vezes são levadas a cabo sob o pretexto de trazer algum benefício público.
Trump e Bolsonaro foram impedidos pelo maior instrumento democrático: o voto. Sem um segundo mandato, não poderiam seguir o exemplo de Orbán, que utilizou a maioria conquistada no Parlamento da Hungria para reescrever a Constituição e as leis eleitorais para consolidar a sua vantagem
Os índices que a The Economist estabelece para medir a democracia dos países são fixos, mas os elementos que cada nação reforça ou enfraquece são intermitentes. A democracia é um conceito abstrato que depende de exercício e ações práticas para se manter vivo nas concretudes das instituições.
A cultura democrática de um país precisa ser cultivada e renovada, sempre. Além da presença da oposição, o que pode definir uma democracia não é a homogeneidade, e sim a alternância de ideias e de poder.
As democracias podem renascer antes mesmo de morrer por completo. No caso brasileiro, vai ser preciso que o novo governo compreenda que tem a missão histórica de ser uma transição, e agir no restabelecimento de preceitos civilizatórios e democráticos e na diminuição da polarização, mesmo que isso custe popularidade.
São apenas promessas. Mas de que é feita a democracia senão delas?