A catarse interrompida na Copa
Edmundo Siqueira 10/12/2022 11:28 - Atualizado em 10/12/2022 11:31
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Não é preciso gostar de futebol — ou mesmo entender do esporte — para sentir a emoção que ele trás. É perceptível. Principalmente em Copa do Mundo, onde uma efervescência coletiva traz harmonia e estimula sentidos estéticos e ritualísticos únicos, em países que tem no Futebol um forte traço cultural, como é o caso brasileiro.


Cultura são os saberes de um povo. Os costumes, o modo de ser, o modo de agir; a forma de ver o mundo. As expressões artísticas são criadas essencialmente desse “caldo” de cultura. Arte, literatura, música, cinema e outras tantas formas de materializar (e eternizar) cultura e conhecimento dependem da cultura para existir.

O futebol tem esse poder no Brasil — como poucas outras expressões humanas possuem por aqui. É uma cultura de massa que permite um sentido de totalidade que é raramente encontrado em outras esferas da vida social. Chico Buarque cantou e compôs o futebol, Nelson Rodrigues escreveu a seleção brasileira co­mo  uma "pátria de chuteiras”.
Nelson Rodrigues no estádio. Era torcedor do Fluminense.
Nelson Rodrigues no estádio. Era torcedor do Fluminense. / Arquivo

Como uma das principais expressões culturais do Brasil, o futebol permite que abraços fraternos aconteçam entre os diferentes de forma genuína. Somos, todos, irmãos de chuteira quando tecemos pela seleção: conversas informais na padaria se transformam em esquemas táticos, insatisfações com o técnico ficam mais leves quando compartilhadas no escritório. As diferenças de classe, de raça e credo deixam de existir, mesmo que por algum momento, e passam a ser coadjuvantes.

O futebol, especialmente na Copa do Mundo, é uma catarse — algo como uma purificação. Na psicanálise, a catarse é um conceito muito caro, usado para que traumas sejam superados. Nas palavras de Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um trauma.

No Brasil de 2022 a catarse de uma vitória derradeira — ou pelo menos a vivida na emoção de uma disputa final — era importante. Mas não aconteceu. Terminamos uma eleição há cerca de 40 dias, e saímos devastados, divididos ao meio e brigando o tempo todo com quem pensa diferente.
Metade dos brasileiros rejeitou o grupo vencedor, outra metade viveu tempos de agonia, sob o risco de uma ruptura democrática. Parte da primeira metade não aceitou o resultado, e está nas ruas, ainda protestando. Pessoas que se agarram em caminhões, que lançam sinais de seus celulares para o céu na esperança alienígena, que cantam o hino para um pneu no meio da rua, precisam ser resgatadas. Elas se perderam.
Muito de psicanálise e catarse era preciso para tentar resgatar essas pessoas, mas também para criar um clima melhor no país para que isso acontecesse, para que pudesse melhorar os afetos de quem não se entregou à uma realidade paralela, e precisa conviver com o diferentes — todos os dias.

Mas a catarse foi interrompida. A “cura” e a “purificação” não foram possíveis. Sim, temos ainda o futebol e nossa cultura, e outros campeonatos virão, mas como seria bom sermos "purificados", um pouco que seja, do ódio que deixamos entranhar na sociedade brasileira.

Os técnicos nas padarias acordaram de ressaca culpando o Tite, que por sua vez culpou a própria equipe, e os abandonou no campo. Na narrativa ‘futebolesca’ do Brasil na Copa de 2022, o técnico Tite se transformou no vilão (merecidamente por abandonar sua equipe aos prantos), os jogadores em heróis derrotados, os memes (sic) em alívio cômico e o craque da rival Argentina, Messi, em anti-herói (errado torcer por ele?).

Os jogadores da seleção provocam no brasileiro, em grande parte de nós, idealização e identificação. A vitória é comemorada aos berros; as derrotas sofridas como se fossem de um ente familiar. E o desenrolar da Copa é uma novela, um conto de Nelson Rodrigues, uma música de Chico ou uma crônica de costumes.

Foto: GABRIEL UCHIDA
A catarse foi interrompida. Mas os conflitos, que regulam qualquer competição esportiva, deve possuir um caráter singular que simultaneamente demarca e harmoniza as diferenças. O esporte ensina que quando queremos eliminar o inimigo, ou levar a batalha às últimas consequências, significaria certamente o fim do drama esportivo — ou da democracia, na analogia necessária.


A derrota na Copa do Mundo de 2022, nos ensina, mesmo sem a catarse necessária, que um oponente só existe em função do outro, e quanto maior a sua força, maior o conflito e mais empolgante é a competição.
O Brasil precisava da vitória. Mas é preciso lembrar que a democracia venceu há 40 dias, e vai continuar precisando de muito esforço. (ah, mas que seria bom uma catarse, seria...)

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