Cultura são os saberes de um povo. Os costumes, o modo de ser, o modo de agir; a forma de ver o mundo. As expressões artísticas são criadas essencialmente desse “caldo” de cultura. Arte, literatura, música, cinema e outras tantas formas de materializar (e eternizar) cultura e conhecimento dependem da cultura para existir.
O futebol tem esse poder no Brasil — como poucas outras expressões humanas possuem por aqui. É uma cultura de massa que permite um sentido de totalidade que é raramente encontrado em outras esferas da vida social. Chico Buarque cantou e compôs o futebol, Nelson Rodrigues escreveu a seleção brasileira como uma "pátria de chuteiras”.
Como uma das principais expressões culturais do Brasil, o futebol permite que abraços fraternos aconteçam entre os diferentes de forma genuína. Somos, todos, irmãos de chuteira quando tecemos pela seleção: conversas informais na padaria se transformam em esquemas táticos, insatisfações com o técnico ficam mais leves quando compartilhadas no escritório. As diferenças de classe, de raça e credo deixam de existir, mesmo que por algum momento, e passam a ser coadjuvantes.
O futebol, especialmente na Copa do Mundo, é uma catarse — algo como uma purificação. Na psicanálise, a catarse é um conceito muito caro, usado para que traumas sejam superados. Nas palavras de Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um trauma.
No Brasil de 2022 a catarse de uma vitória derradeira — ou pelo menos a vivida na emoção de uma disputa final — era importante. Mas não aconteceu. Terminamos uma eleição há cerca de 40 dias, e saímos devastados, divididos ao meio e brigando o tempo todo com quem pensa diferente.
Mas a catarse foi interrompida. A “cura” e a “purificação” não foram possíveis. Sim, temos ainda o futebol e nossa cultura, e outros campeonatos virão, mas como seria bom sermos "purificados", um pouco que seja, do ódio que deixamos entranhar na sociedade brasileira.
Os técnicos nas padarias acordaram de ressaca culpando o Tite, que por sua vez culpou a própria equipe, e os abandonou no campo. Na narrativa ‘futebolesca’ do Brasil na Copa de 2022, o técnico Tite se transformou no vilão (merecidamente por abandonar sua equipe aos prantos), os jogadores em heróis derrotados, os memes (sic) em alívio cômico e o craque da rival Argentina, Messi, em anti-herói (errado torcer por ele?).
Os jogadores da seleção provocam no brasileiro, em grande parte de nós, idealização e identificação. A vitória é comemorada aos berros; as derrotas sofridas como se fossem de um ente familiar. E o desenrolar da Copa é uma novela, um conto de Nelson Rodrigues, uma música de Chico ou uma crônica de costumes.
A catarse foi interrompida. Mas os conflitos, que regulam qualquer competição esportiva, deve possuir um caráter singular que simultaneamente demarca e harmoniza as diferenças. O esporte ensina que quando queremos eliminar o inimigo, ou levar a batalha às últimas consequências, significaria certamente o fim do drama esportivo — ou da democracia, na analogia necessária.
A derrota na Copa do Mundo de 2022, nos ensina, mesmo sem a catarse necessária, que um oponente só existe em função do outro, e quanto maior a sua força, maior o conflito e mais empolgante é a competição.