Arthur Soffiati - Coisas que não combinam
* Arthur Soffiati - Atualizado em 26/10/2024 08:27
Um dos pensadores que fizeram parte da minha formação foi o italiano Roberto Vacca, com “A próxima idade média”, seu mais popular livro. Ele ainda vive, com seus 97 anos bem produtivos. Escreveu alguns livros de ficção científica, mas se tornou famoso ao aplicar a matemática na análise da vulnerabilidade dos sistemas centralizados e duros.
Em “A próxima idade média”, ele concebe a vulnerabilidade da civilização ocidental globalizada. Tudo começa quando um avião se choca contra uma rede de alta tensão durante um inclemente inverno nos Estados Unidos. A falta de energia em várias regiões do país provoca um efeito-cascata. A produção entra em colapso. Não apenas a energia elétrica, mas outras fontes geradoras, também sofrem falência. Os transportes acabam paralisados. A distribuição de bens sucumbe. O caos toma conta do sistema global porque ele todo depende dos Estados Unidos.
Privadas da “civilização”, as pessoas se tornam violentas. Saques ocorrem em todo o mundo. Aos poucos, o individualismo é substituído pela cooperação. Órfãos do grande sistema, é preciso encontrar soluções de subsistência por conta própria. Assim, organizam-se comunidades autossuficientes em todo o mundo. Vacca compara o novo e imaginário contexto mundial à Idade Média ocidental, agora planetarizada. O livro fez tanto sucesso que motivou muitos debates pelo mundo afora. O mais conhecido deles contou com a participação de Umberto Eco e resultou no livro “A nova idade média”.

Flertando com a pós-modernidade, Eco sustentou que a distopia de Vacca não era apenas uma possibilidade, mas já estava se constituindo nos países centrais. Eco apontava a deterioração ambiental, o neonomadismo, a insegurança, os peregrinos, os grupos de rua, a tendência à autonomia e à autogestão como características da nova era. Tudo já estava acontecendo.
Não será uma crise causada pela complexidade que está provocando apagões na cidade de São Paulo? Existe ali uma megalópole que tende a crescer com elementos que não combinam. A megacidade foi concebida para condições climáticas do Holoceno. A crise desta época, cada vez mais perceptível a partir da década de 1970, inclui um clima hostil a cidades arrogantes que se consideravam imunes a chuvas e secas. O sistema de distribuição de energia elétrica segue normas do século XX e combina postes que suportam ventos de até 70 km com árvores não devidamente podadas. A concessionária goza de má reputação até na Itália, onde fica a sua sede. E ela toma conta do Brasil. A Agência Federal concedente também está defasada. As chuvas e os ventos que têm se abatido sobre a cidade passam de 100 km e derrubam árvores e postes. A fiação é exposta e se rompe com a queda de árvores. A população, o comércio e a indústria ficam sem energia por dias.
Por mais que a empresa fornecedora se mostre ineficiente, parece que os limites foram superados. Será que apenas o enterramento da rede de distribuição basta? Tudo indica que os eventos climáticos vão se tornar mais violentos e soluções emergenciais não vão funcionar numa cidade que não se ajusta aos novos tempos. Pôde-se verificar o mesmo em Nova Friburgo, em 2011, com chuvas diluvianas que mudaram a topografia do terreno. Recentemente aconteceu o mesmo com Petrópolis, Angra dos Reis e Baixada Santista. Em 2024, muitas cidades do Rio Grande do Sul foram devastadas por tempestades nunca registradas antes.
Grandes cidades em margens de rios e encostas de morro, em terreno desmatado, com moradores pobres instalados em área de risco, contando com sistemas de serviços concebidos em tempos antigos e fornecidos por empresas que colocam o lucro em primeiro lugar são coisas que não combinam mais. Elas formam um sistema paquidermizado que não resiste às radicais mudanças do clima.
Quando ocorre um evento climático que coloca em cheque o sistema concebido num momento triunfalista, cientistas vêm a público demonstrando que é preciso reduzir drasticamente a emissão de gases causadores do efeito-estufa ou construir cidades mais resilientes. Os políticos concordam, fazem sobrevoos aos locais afetados, anunciam a liberação de verbas e tudo continua como antes. As mudanças, se ocorrem, caminham a passo de tartaruga e são neutralizadas por práticas antigas.
Enfim, as cidades do Brasil revelam não estar preparadas para enchentes e estiagens. Quando chove mais, as cidades da baixada da Guanabara se transformam num caos. Quando as secas extremas favorecem queimadas, as cidades são invadidas por fumaça e fuligem. E não só no Brasil. Os furacões, cada vez mais violentos, mostram que cidades de países considerados desenvolvidos são vulneráveis. As coisas não estão mais combinando. E apenas começamos a atravessar um oceano revolto.
 

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