Em junho de 2013 estreava a trilogia cinematográfica estadunidense “The Purge” — O Expurgo em uma tradução literal, ou “Noite de Crime”, como o filme chegou no Brasil. Ambientado em um futuro (não tão) distante e distópico nos Estados Unidos, onde sobrevém uma política criminal denominada “Dia do Expurgo”, que suspendia toda e qualquer previsão legal criminalizadora — uma espécie de anistia prévia para cometer qualquer crime, inclusive contra a vida.
Convido o leitor a relacionar o que aconteceu nesse 7 de setembro no Brasil, com uma purga, uma sessão de descarrego de ódios e ressentimentos guardados, assim como no Dia do Expurgo da ficção norte-americana. O Dia da Independência, serviu para alguns brasileiros exorcizarem seus piores sentimentos, e desnudarem sua verdadeira face em manifestações de rua, com pautas antidemocráticas e golpistas.
A brutalidade assassina que foi liberada no filme nasceu da política do expurgo implantada por “novos pais fundadores”, reunidos em uma organização ficcional chamada de New Founding Fathers of América (NFFA) — uma espécie de “Aliança pelo Brasil”, mal comparando. Para criar apoiadores fanáticos, uma frase era entoada, na produção cinematográfica, como oração por todo indivíduo que adere à prática do expurgo (em tradução livre): “Abençoados sejam os novos pais fundadores por nos permitirem purificar e limpar nossas almas. Bendito seja a América, uma nação renascida!” — algo como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”.
Classes sociais, exclusão, racismo e o expurgo
Na arte (imitando a vida!), os purgadores se apresentam com máscaras, que representam o estereótipo do homem e da mulher “de bem”, brancos e bem-vestidos. “Nós somos como vocês, cidadãos de bem, de elite” — dizia um personagem em uma cena um homem negro era escolhido para que fosse purgado; assassinado. Em outra cena, tenta-se justificar uma agressão brutal: “ele é apenas um mendigo, um porco”. Mais a frente, disse uma mulher de classe média: “isso não deveria acontecer no nosso bairro!”.
As pesquisas demonstram que o eleitor “clássico” do Bolsonaro é homem, branco, de meia-idade, de classe média, com ensino superior completo e das regiões sul e sudeste do País. O nível superior aqui evidencia o acesso à educação privada, mais que qualidade acadêmica. Por óbvio, não classifica a totalidade dos apoiadores do presidente, que representam, ainda, parcela significativa dos brasileiros. Segundo a última pesquisa do Instituto Atlas, divulgada nesta segunda-feira (6), o percentual de pessoas que avaliam o governo como ótimo/bom é de 24%. Desaprovam o presidente, 64% dos entrevistados.
O apoiador típico — e fiel — do presidente Bolsonaro representa a “Casa-Grande”, em um país que está entre os últimos no mundo que aboliram a escravidão. Gilberto Freyre, em livro publicado em 1933, já apresentava a importância da senzala e da casa-grande na formação sociocultural brasileira. Esse indivíduo, assim como Bolsonaro, se distancia do conceito de conservador, com práticas, na realidade, muito mais aderentes ao reacionarismo. O conservador aceita que mudanças na sociedade aconteçam, embora acredite que elas devem ser feitas de maneira gradual, sem provocar rupturas. O reacionário, quer que a sociedade ande para trás, que volte a “ser como era antes”, em um tempo que ele, o reacionário, acredita ter sido melhor, onde a família, religião e os bons costumes eram respeitados — e convivia-se muito bem com a escravidão e exclusão social extrema.
Esse perfil viu no 7 de setembro uma oportunidade de extravasar seu ódio de classes, seu preconceito de raça, de orientação sexual, seu machismo e sua ignorância sobre todos os fundamentos democráticos. Bolsonaro representa essa “liberdade”. Para seus apoiadores, ele fala a mesma língua. Com slogans requentados do fascismo de Mussolini, defende armas, o sacrifício pela pátria, uma pseudo superioridade masculina (muitas vezes para purgar uma masculinidade frágil e mal resolvida) e a luta contra uma ameaça comunista — inexistente no Brasil, mesmo quando existia de fato no mundo.
Veja vídeo reproduzido em rede social das manifestações desse 7 de setembro:
O sete de setembro e outros expurgos na história – extremismo de qualquer ideologia
Bolsonaro e seus apoiadores trouxeram para as manifestações de rua de hoje pautas antidemocráticas. Pregaram abertamente o fechamento de um poder da República, em clara afronta à Constituição. Em um carro de som, o presidente proferiu uma fala golpista e ameaçadora ao Supremo Tribunal Federal, para uma claque inflamada: “Ou o chefe desse poder enquadra o seu, ou esse poder pode sofrer aquilo que nós não queremos".
Em ato contínuo, disse que estará reunido com o Conselho da República, órgão previsto na Constituição que tem a competência de pronunciar-se sobre intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio. Bolsonaro radicaliza e tenciona ainda mais uma crise criada por ele mesmo, com finalidades de autogolpe.
Radicalizações de discursos e de ações não são exclusividades da extrema-direita, onde Bolsonaro e seus apoiadores se localizam no espectro ideológico. A extrema-esquerda também produz seus monstros. E seus expurgos.
Com a Constituição de 1936 na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), Josef Stálin, revolucionário comunista, iniciava um processo de ditadura ilimitado. Através do chamado Grande Expurgo, ele começou a aniquilar os possíveis críticos à sua política. Stálin então promove um expurgo contra “os inimigos do povo, os arrivistas, os sabotadores hipócritas, os bêbados e os degenerados”. Matando milhares de cidadãos considerados “socialmente perigosos”, em um longo período de medo e terror.
Seja na experiência soviética, na ficção ou no Brasil de hoje, o extremismo produz o que temos de pior na sociedade. A tolerância deve-se limitar aos intolerantes. A democracia não pode permitir que seus próprios instrumentos a destrua. Os golpes de estado mudaram de metodologia — a democracia passou a morrer “por dentro”, com o enfraquecimento institucional e sem a necessidade de tanques nas ruas.
O que precisamos é criar uma sociedade que não precise de dias de expurgo. Que o radicalismo e o extremismo fique restrito a ficções distópicas.
Fonte consultada: O EXPURGO:
o Populismo Punitivo e a Gestão do Excesso, de Jackson da Silva Leal e Sara Araujo Pessoa. Disponível aqui.