Folha Letras - A árvore que eu via da janela
Ronaldo Junior*
Aconteceu abruptamente, sem cerimônias. Ela estava lá, frondosa, alta, com as raízes eclodindo pela calçada da vizinhança. A casa do velho de poucas palavras tinha sua entrada coberta pelas folhas, que ele fazia questão de juntar e queimar ao menos duas vezes na semana.
Amanheci com o encontro entre as serras e a madeira. Vários uniformes andavam pela rua separando os galhos para jogar num triturador que jorrava pedaços de árvore para todo lado.
Deve ser uma poda para evitar que os galhos caiam com o vento, era o que eu justificava. Mas o simples corte de galhos atravessou a tarde, deixando a árvore sem qualquer resquício de verde.
Dia seguinte, o trabalho seguiu. A árvore está, desde então, reduzida a um toco que mal serve de banco. Se foram a sombra, as folhas espalhadas, o farfalhar que anunciava qualquer mínimo vento, as pequenas flores brancas que choviam em certos dias do ano e o rangido – qual porta entreaberta em filme de terror – que ditava a saúde da madeira.
Por um momento, pensei no primeiro encontro do jornalista com a mulher da casa abandonada, narrado em podcast, e cheguei a idealizar que, ao contrário, o vizinho que varria as folhas seria um defensor da derrubada da árvore, mesmo não tendo, aparentemente, nada melhor para fazer além de varrer e incendiar folhas na sarjeta.
Não havia, porém, nada a ser feito. A árvore estava reduzida ao chão. Argumentariam, é provável, que a madeira estava podre, com risco de queda iminente. A árvore que compunha o mundo que eu compreendia através da janela, na verdade, valia muito menos que um poste erguido a cada tantos metros de calçada.
Aquela árvore arrancada vorazmente numa tarde do meio do ano representava uma violência incompreensível contra a paisagem. Exceto para o vizinho que se irritava com as folhas. Exceto para o pedestre que tentava trafegar pela calçada. Exceto para a própria calçada, deformada pelas raízes incertas. Exceto para a árvore, incrustada no meio da cidade, isolada entre asfalto e muro, obrigada a dividir sua existência com quem a considerava descartável.
A árvore foi extraída no meio de 2024, e, ainda hoje, eu olho pela janela e vejo um vazio, sem compreender espacialmente a rua onde moro, sem compreender a falta de importância, sem compreender que a árvore - a falta dela - atravessaria a forma como eu enxergo minha própria casa.
*Presidente da Academia Campista de Letras.
**Texto publicado originalmente no blog Extravio, no portal Folha 1.
*Presidente da Academia Campista de Letras.
**Texto publicado originalmente no blog Extravio, no portal Folha 1.