Adeus a Milton Gonçalves, um dos maiores nomes da TV, do cinema e do teatro no Brasil
Matheus Berriel 01/06/2022 04:51 - Atualizado em 01/06/2022 12:10
Milton Gonçalves
Milton Gonçalves / Divulgação
Um dos maiores nomes da cultura brasileira, o ator e diretor Milton Gonçalves morreu no início da tarde da última segunda-feira (30), aos 88 anos. Ele foi a óbito em casa, no Rio de Janeiro, por complicações que vinha tendo desde que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), em 2020. Seu corpo foi velado no Theatro Municipal do Rio e cremado no crematório da Penitência, no bairro carioca do Caju. A morte aconteceu pouco mais de um mês após a última grande homenagem recebida em vida por Milton, que foi enredo do desfile da Acadêmicos de Santa Cruz na Série Ouro do Carnaval carioca.
— Cumprimos nosso papel enquanto escola de samba homenageando uma figura tão potente quanto Milton Gonçalves em 2022, mas ainda pouco perto do que merece esse orixá de nossa cultura. Esteja em paz, obrigado — publicou a Acadêmicos de Santa Cruz no Instagram.
Nascido em 9 de dezembro de 1933, na cidade de Monte Santo, em Minas Gerais, e filho de camponeses, Milton Gonçalves se mudou com a família para São Paulo ainda na infância. Na metrópole paulista, foi aprendiz de sapateiro, alfaiate e gráfico. Também fez teatro infantil, estreando profissionalmente em 1957, na peça “Ratos e Homens”, de John Steinbeck, no Teatro de Arena. A estreia na televisão se deu com o mesmo espetáculo, também encenado em 1957 no teatro da TV Tupi. Na emissora, participou ainda de teleteatros como “Apenas o faraó tem alma”, em 1958, e “A canção sagrada”, no ano seguinte, bem como do seriado “O vigilante rodoviário”, em 1961.
Morando no Rio a partir de 1958, Milton Gonçalves ingressou no Teatro Nacional de Comédia. Acabou se consagrando nos palcos nas décadas seguintes, participando de peças como “Eles não usam black-tie”, em 1957; “Arena contra Zumbi”, em 1963; e “Memória de um sargento de milícias”, em 1963. Também escreveu quatro espetáculos, um deles montado pelo Teatro Experimental do Negro.
O marcante ano de 1958 também reservou a Milton sua primeira atuação em filme, participando de “O grande momento”. Era o início de uma extensa carreira nas telonas, com mais de 60 filmes, entre eles “O grande sertão” (1965), “Macunaíma” (1969), “A Rainha Diaba” (1974), “O Beijo da Mulher Aranha” (1985), “Natal da Portela” (1988), “O que é isso, companheiro?” (1997), “Orfeu” (1999), “Villa-Lobos - Uma vida de paixão” (2001), “Carandiru” (2003), “Assalto ao Banco Central” (2011), “Pelé: o Nascimento de uma lenda” (2017), “Carcereiros - O filme” (2019) e “Pixinguinha, um homem carinhoso” (2021).
— Milton Gonçalves foi um dos atores que dignificaram a profissão em novelas e filmes. Foi um dos poucos artistas negros a trabalhar na televisão e no cinema num tempo em que o negro ocupava posição subalterna. Sempre com a mesma dignidade e segurança, ele atravessou décadas fazendo papéis relevantes. Conheci-o num episódio do seriado “Vigilante rodoviário”, que voltei a assistir recentemente — comenta o historiador e cinéfilo Artistides Arthur Soffiati.
Contratado pela TV Globo antes mesmo da sua fundação, Milton Gonçalves também construiu longa trajetória na emissora. Sob a direção de Graça Mello, participou de experiências dramatúrgicas como o seriado “Rua da Matriz” e a novela “Rosinha do Sobrado”, em 1965. Entre muitos trabalhos, atuou e dirigiu as novelas “Irmãos Coragem” (1970) e “Escrava Isaura” (1976), além de séries como “Carga Pesada” (1979) e “Caso Verdade” (1982-1986). Ainda na Globo, fez parte dos elencos de novelas e seriados como “Gabriela” (1975), “Roque Santeiro” (1975), “Sinhá Moça” (1986 e 2006), “O Rei do Gado” (1996), “Dona Flor e seus dois maridos” (1998), “Malhação” (1999), “A Grande Família” (2001), “Carandiru, outras histórias” (2005), “Força-tarefa” (2009), “Filhas de Eva” (2021).
— Milton Gonçalves foi um dos grandes atores deste país. Emprestou seu corpo de ator a personagens memoráveis no cinema, no teatro, na televisão. A arte da representação perde um ator que só não teve mais protagonismo devido à cor, num país cujo talento nem sempre é o cartão de entrada para os grandes papéis. Mesmo assim, Milton Gonçalves fez dos personagens que defendeu uma aula de arte dramática para todos os que o assistiram no ofício da atuação. Inesquecível como “Rainha Diaba” — destaca o escritor, ator e diretor teatral Adriano Moura, cuja peça “Meu nome é Cícero” estreia no próximo domingo (5).
A representatividade de Milton Gonçalves para o movimento negro nas artes também foi comentada pela poetaa Eliza Araújo.
— Uma presença como a de Milton Gonçalves é importantíssima na TV e no teatro brasileiros, sem contar a sua contribuição política para o debate contra o preconceito racial e a favor da arte produzida por pessoas negras. Ele deixa um legado de uma série de novelas, espetáculos e reconhecimento internacional para o seu trabalho. De minha parte, há um senso de gratidão enorme pela sua voz, força e seu trabalho. Que descanse em paz e que seja sempre lembrado e referenciado em nossa cultura — deseja Eliza.
Muito atuante em Campos, o ator Alexandre Ferram tem na figura de Milton Gonçalves uma fonte de inspiração: “Um dos maiores e importantes atores desse país. Um dos maiores e mais importantes negros desse país. O falecimento de Milton Gonçalves deixa, sem dúvidas, a produção teatral, cinematográfica e teledramatúrgica carente de seu talento e representatividade. Foi inspiração para mim, pois cresci vendo sua presença marcante nas telas e a admiração de minha mãe, que era fã de carteirinha. Um abraço forte na luta antirracista nos palcos brasileiros, Milton trabalhou incansavelmente pela emancipação do negro na arte e para que eu, ator negro, pudesse hoje estar dando esse depoimento neste jornal”.
O discurso é reforçado pela atriz e produtora cultural Lúcia Talabi, outra referência das artes em Campos e região. “A gente perde mais um volume da nossa enciclopédia ancestral”, afirma Lúcia. “Por outro lado, fica um legado importantíssimo deixado por ele. Cada vez que temos uma perda como a do Milton, como a da (cantora e compositora) Elza Soares, a da (atriz) Ruth de Souza, tenho comigo esse sentimento de gratidão por ter recebido esses conhecimentos que eles quiseram e puderam doar, e fizeram bem. Há um sentimento de adeus, sim, mas acho que eles vão com uma missão cumprida”, complementa.
Uma entre tantos artistas que tiveram oportunidade de contracenar com Milton, a atriz campista Zezé Motta foi ao velório se despedir do amigo e colega de profissão. “Quando alguém de tanta importância se despede de nós, sempre me faltam palavras, como agora. Milton Gonçalves era um dos mais importantes atores que este país já teve. Milton faz parte da história da TV brasileira. Um gigante da nossa cultura. Foram muitos sets juntos, muitas histórias, muitas famílias... Nosso último trabalho juntos foi no especial “Juntos a magia acontece” (2019), que ganhou prêmio em Cannes. Descanse em paz, meu querido colega. Obrigada por tanto, você é eterno. A falta que ele faz é enorme. Milton é, Milton sempre será referência”, escreveu no Instagram.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, emitiu nota lamentando a morte do ator e diretor “Lamento profundamente a perda de um dos artistas mais completos que a TV brasileira já teve. Milton Gonçalves foi não só um dos ícones da telinha e do cinema, mas um cidadão consciente. O que nos conforta é seu exemplo de honradez, coragem, e o legado que nos deixa como ator”, declarou o governador, cargo disputado por Milton Gonçalves em 1994, tendo pouco mais de 4% dos votos.
Milton teve participação política mais efetiva no Flamengo, seu clube de coração, do qual era sócio emérito e foi vice-presidente social. Em 2012, chegou a ser lançado como candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Ronaldo Gomlevsky, retirada antes do pleito. “Aos familiares e amigos do excepcional ator, desejamos muita força neste momento tão triste”, publicou o clube em nota na segunda-feira. Uma camisa do Flamengo foi colocada sobre o caixão de Milton durante o velório nessa terça.

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