Em sua obra Sobre o Estado, o sociólogo Pierre Bourdieu oferece um diagnóstico tão preciso quanto desconfortável: o Estado moderno não é apenas o detentor do monopólio da violência física legítima, mas também da simbólica.
E é com esta última que ele faz sua mágica mais eficaz: transforma interesses particulares em verdades públicas, burocracias em consensos e grandes corporações em representantes do “bem comum”. Um espetáculo digno de aplausos — ou vaias.
O Estado, esse maestro da ilusão
A peça se desenrola principalmente no palco do licenciamento ambiental, esse ritual sofisticado onde se simula preocupação ecológica enquanto se celebra o progresso com letra maiúscula e cifrão.
Com uma encenação digna de tragédia grega (ou farsa parlamentar), o Estado aparece como árbitro imparcial, quando, na verdade, cumpre o papel de mordomo das grandes empreiteiras, sempre pronto a servir com elegância técnica e verniz jurídico.
Os megaprojetos — portos, hidrelétricas, mineradoras — são os protagonistas dessa ópera do “desenvolvimento”. E o enredo é conhecido: prometem emprego, prosperidade e modernização, enquanto comunidades tradicionais são invisibilizadas e impactos socioambientais viram notas de rodapé nos estudos de impacto.
É como se o futuro estivesse reservado apenas àqueles que cabem nas planilhas de custo-benefício.
Bourdieu nos alerta que o Estado molda as categorias de percepção e legitimação: ele define o que é “viável”, “interessante”, “urgente”. E o que sobra para os que vivem às margens dessa lógica? O silêncio institucional. A desapropriação simbólica da própria existência.
O mais irônico é que tudo isso se faz em nome do “interesse público”. Como se a coletividade estivesse naturalmente de acordo com as decisões tomadas em salas fechadas, por técnicos pagos por quem será licenciado.
A farsa é tão bem construída que a contestação vira desvio, e o ativismo, crime.
Mas o teatro precisa continuar. E o público — assiste, muitas vezes sem saber que é parte do elenco. Até que ponto vamos aplaudir a cortina se fechando sobre os direitos dos mais vulneráveis?
Bourdieu não oferece redenção, mas um convite à crítica. E, para quem ainda não perdeu a capacidade de se indignar, essa já é uma forma de resistência.