
Era abril de 2016. O Brasil vivia uma turbulência política que culminaria no impeachment da presidente. Uma operação da polícia federal havia revelado um extenso esquema de corrupção que levava o país a ver políticos tradicionais serem presos e os subterrâneos do poder ficarem expostos.
O que poderia ser um processo de moralização da política se transformou em um espetáculo midiático, alimentado diariamente, com procuradores e juízes arvorados a salvadores da pátria corrompendo o devido processo legal. E o que poderia ser a queda de uma presidente impopular que produziu uma crise econômica gigantesca, se transformou em um julgamento parlamentar burlesco.
Entre os deputados mais grotescos que se manifestaram, um se destacava: Jair Messias Bolsonaro. Entre placas de “Tchau, querida!” e faixas verdes e amarelas, Bolsonaro dedicou o seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, ex-comandante do DOI-Codi — um dos maiores centros de repressão durante a ditadura militar — morto em 2015. Se não bastasse o absurdo de exaltar um torturador, o então deputado Jair complementou dizendo que ele seria o “pavor de Dilma Rousseff”, a mesma mulher que estava sendo julgada na ocasião.
No plenário da Câmara dos Deputados, aos olhos de todo país, em um julgamento acompanhado como uma novela ou um campeonato de futebol, um deputado homenageia um torturador que atuava em nome da odiosa ditadura brasileira, e de forma sádica fez questão de fazer com que uma mulher julgada lembrasse os atos de extrema violência sofridos.

Por óbvio, o ódio na sociedade brasileira não começou com a lembrança criminosa de Ustra feita por Bolsonaro. Estamos entre os países que mais receberam escravizados da diáspora africana e entre os últimos a abolir a escravidão. Nossa história é repleta de golpes de Estado, e mantivemos uma desigualdade pornográfica, uma das maiores do mundo, e uma estrutura social violenta, autoritária, machista e preconceituosa.
Porém, não havia incitações de ódio e incentivo à toda sorte de ruptura institucional como experimentamos desde a operação Lava Jato. Criou-se no Brasil uma cultura, um ambiente que favorece que padrões de comportamento agressivos e de ressentimento se repitam em certos grupos, e se reproduzam ao ponto de se transformar em um movimento de massa, ou algo definidor de identidades.

Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’, como era conhecido, não se radicalizou a ponto de se transformar em um homem-bomba alijado de contexto social e político. Não haveria um atentado como o que ocorreu em Brasília no último dia 13 se não houvesse condições pregressas. O ódio acendeu os rastilhos das bombas.
No último domingo, a casa onde morava Tiu França foi incendiada, em Rio do Sul, Santa Catarina, com sua ex-esposa no interior da residência, que encontra-se em estado grave. Uma das hipóteses investigadas é de que a própria ex-mulher do autor do atentado tenha provocado o incêndio.
É preciso dar às coisas os nomes que elas têm.
As esquerdas brasileiras caíram na esparrela de vulgarizar conceitos e palavras fundamentais para entendermos o momento atual. O fascismo foi retirado de contexto e usado como adjetivo para gente como Fernando Henrique e Geraldo Alckmin em tempos da polarização PT x PSDB. Eles e outros democratas convictos eram taxados de autoritários e golpistas por ter pensamentos diferentes em relação à economia.

Como no fascismo, a ideia construída na extrema-direita atual também acredita em uma “maioria nacional única”, que é personificada no homem, branco, heterossexual, de classe média urbana. É preciso, assim como nos fascismos, o culto à masculinidade, a negação do feminino e a aversão a minorias como negros e LGBTs.
Cultuar figuras como Brilhante Ustra é algo aderente a esse conjunto de ideias. O que pode parecer asqueroso para muitas pessoas, denota força e coragem para o grupo já iniciado no movimento de inspiração fascista. A ditadura e a tortura passam a ser instrumentos necessários para eliminar inimigos, mesmo que imaginários.
O plano para matar
Uma das características da extrema-direita brasileira é a participação das Forças Armadas. Diferente de outros países, como os EUA por exemplo, o braço armado do Brasil não se sente incomodado em participar da vida política. Pelo contrário: são instados como garantidores, ou como sendo a última alternativa para “manter a ordem”.
Basta olharmos para a construção política do país, desde o início da República, para percebermos que há uma significativa ala golpista nas Forças Armadas. Os militares assumiram a condição de governo na gestão do ex-presidente Bolsonaro, ocupando diversos cargos, inclusive do primeiro escalão.

O golpismo militar aliado do bolsonarismo radical ganhou contornos ainda mais inaceitáveis. Menos de uma semana do atentado em Brasília, uma investigação da Polícia Federal descobriu que cinco pessoas (quatro militares e um policial federal) conversavam em 2022 em um aplicativo de mensagens sobre um plano para matar o então presidente eleito, Lula, seu vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.
Para matar o presidente, segundo documento juntado aos autos pela PF, seria utilizado “envenenamento ou uso de [produtos] químicos”. No caso de Moraes, o grupo planejava “o uso de artefato explosivo”.
Pela primeira vez na história do Brasil, um general (Mário Fernandes, general da reserva e ex-número dois da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro) foi preso por conspirar contra o país.
A Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a chegada de Bolsonaro ao poder, a condução da pandemia, o 8 de janeiro, o 13 de novembro e a descoberta do plano dos militares para eliminar a cúpula do poder no Brasil são explosivos detonados pelo ódio.
A ascensão da extrema-direita não é uma exclusividade brasileira, faz parte de nosso Zeitgeist (espírito do tempo), e tem origem por diversos fatores, com variáveis diferentes a depender do país, mas é possível traçar no Brasil uma linha do tempo do ódio, um encadeamento de fatos que possibilitaram a demonização da política e a cisão da sociedade.
Esse estado de coisas onde homens-bomba são criados e planos de assassinato são iniciados por quem perdeu as eleições, não é possível existir sem o ódio e o ressentimento. Fatos isolados como a homenagem ao coronel torturador Brilhante Ustra não explicam como chegamos até aqui. Mas a normalização sucessiva dos absurdos, certamente permitiu.

Na mesma votação em que Bolsonaro homenagiou Ustra, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse, quase em profecia: “Que Deus tenha misericórdia dessa nação”. A palavra “misericórdia” deriva de miseratio (miséria) e cordis (coração). Literalmente, significa “coração que se debruça sobre a miséria humana”.
Que possamos sair da condição de miséria que a banalidade do mal criou; novamente.
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Edmundo Siqueira
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