Depois de acordos quebrados, um novo: a Câmara dá novo capítulo à novela do Solar e do Arquivo Público
Edmundo Siqueira 09/11/2024 18:50 - Atualizado em 09/11/2024 18:59

O enredo é de novela. Em outubro de 2021, há pouco mais de três anos, a cidade tomava conhecimento (veja aqui) de um acordo que poderia ser a salvação de dois patrimônios históricos importantes, ambos em situação precária, tanto financeira quanto estrutural: o Solar do Colégio e o Arquivo Público Municipal.

O acordo envolvia Alerj, prefeitura de Campos, Uenf e o Arquivo, e repassava parte das economias — dos chamados duodécimos — da Assembleia Legislativa para a universidade estadual, sediada em Campos. Em 15 de dezembro, menos de 2 meses do acordo firmado, a Lei 5.275/2021 autorizava a transferência de R$ 30 milhões do Fundo Especial da Alerj para a Uenf; alguns dias depois o dinheiro estava na conta da universidade.

O Fundo Especial tem lei própria (6.041/2011), onde é definido como os superávits podem ser repassados a outras instituições. Na ocasião do acordo, o art. 2º da lei determinava que os recursos poderiam ir para instituições de ensino e pesquisa, desde que fossem “federais ou estaduais de ensino superior”. Foi apenas em 2022 que a Lei 9.760 incluiu a possibilidade do Fundo repassar recursos diretamente aos “municípios fluminenses” ou a consórcios públicos, como o Cidennf.

Acordo firmado, dinheiro repassado e leis cumpridas. Tudo parecia fluir bem para que o restauro do Solar e a reestruturação do Arquivo, incluindo a digitalização do acervo, acontecessem na prática. Mas não foi bem assim.
A publicação da lei que autorizou o repasse de R$ 30 milhões do Fundo Especial da Alerj para a Uenf
A publicação da lei que autorizou o repasse de R$ 30 milhões do Fundo Especial da Alerj para a Uenf / Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro
Os impasses em Campos

Do total dos recursos, a Uenf ficaria com a responsabilidade de aplicar R$ 20 milhões no patrimônio campista e R$ 10 milhões na Fazenda Campos Novos, em Cabo Frio. Porém, as prioridades da reitoria na ocasião foram todas direcionadas ao litoral. As obras em Cabo Frio aconteceram de forma eficiente e célere — dada a complexidade que qualquer restauro de patrimônio histórico impõe. Houve grupos de trabalho com a participação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde o início, e a relação com a prefeitura de Cabo Frio era próxima e azeitada.
Isso não aconteceu em Campos. A relação sempre foi de desconfiança entre universidade e prefeitura, e os gestores pareciam distantes administrativa e politicamente. A Uenf decidiu corretamente por fazer um processo licitatório para a aplicação dos recursos, mas pecou na letargia.

Quando o acordo com a Alerj aconteceu, havia uma parceria formalizada entre o poder público municipal e uma associação mineira chamada Sociedade Artística Brasileira (Sabra). Os termos da parceria diziam que a Sabra iria atuar na captação de recursos e na cooperação técnica com fins de restaurar patrimônios históricos em Campos. Na ideia inicial da prefeitura, seria essa associação que tocaria as obras no Solar do Colégio.

A Uenf, novamente com a razão, rechaçou a indicação direta e quis dar transparência na escolha da executora das obras, via licitação pública. E novamente pecou por inércia.

Em novembro de 2022, mais de um ano do acordo, portanto, acontecia uma reunião na Alerj (veja aqui aqui) com a presença de todos os envolvidos, onde o reitor da Uenf à época surpreendeu a todos com a justificativa pela demora. Segundo ele, seria necessário que a prefeitura contratasse, pagasse e apresentasse o projeto de restauro do Solar.

Conduzindo a reunião, o então diretor administrativo da Alerj, Wagner Victer, sugeriu ao reitor o óbvio: licite o projeto executivo e pague com os R$ 20 milhões depositados.

Saímos da Alerj naquele dia (eu estive presente como jornalista e ativista cultural) com outro acordo firmado. No prazo de 30 dias, a Uenf faria a licitação do projeto executivo com previsão orçamentária e o processo imediato de contratação da digitalização do acervo histórico do Arquivo Público Municipal.
Outro acordo quebrado
Foi apenas em 31 de julho de 2023 que a primeira contratação para o Arquivo aconteceu. Com 214 dias de atraso (contados do segundo acordo e já descontados os 30 dias) a empresa Technische Engenharia e Consultoria Ltda recebeu R$ 350 mil para “assessoria e consultoria” na “elaboração de projeto básico e auxílio a termo de referência” para licitar o projeto executivo (como sugerido na Alerj em 2022).
Contratação da empresa que prestou serviços de assessoria e consultoria para desenvolver o projeto básico e Termo de Referência para o projeto de restauro total do Solar do Colégio.
Contratação da empresa que prestou serviços de assessoria e consultoria para desenvolver o projeto básico e Termo de Referência para o projeto de restauro total do Solar do Colégio. / Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro


A ideia a partir daí, por indicação do Iphan, foi construir uma estrutura metálica externa ao Solar, que não alterasse sua estrutura mas que o protegesse das chuvas e outras intempéries enquanto o restauro total não acontecesse. Novamente, acertava-se na decisão e pecava-se na letargia.

A segunda licitação, dessa vez para construir a sobrecobertura, só seria publicada em 9 de julho de 2024, no valor de R$ 1,7 milhão (veja aqui). Por ironia do destino — e para dar mais cara de enredo de novela —, a empresa ganhadora desse segundo processo licitatório é ligada diretamente à Sabra, a SVG Construções e Consultoria Ltda.
Edital para contratação de empresa que irá construir a sobrecobertura. A empresa vencedora do certame pode ser inabilitada.
Edital para contratação de empresa que irá construir a sobrecobertura. A empresa vencedora do certame pode ser inabilitada. / Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro


Vereadores entram no enredo novelístico

Em duas reuniões seguidas, a primeira nesta quinta-feira (7), e outra ontem (8), a Uenf recebeu vereadores que foram cobrar sobre o início das obras no Solar e as intervenções no Arquivo.

A atual reitora, Rosa Rodrigues, e a equipe de licitação da Uenf, receberam os vereadores Juninho Virgílio, Kassiano Tavares e Fábio Ribeiro (que é servidor da universidade licenciado), além do chefe de gabinete do vereador Edson Batista, Fernando Machado. A diretora do Arquivo, Rafaela Machado, participou do segundo dia de reunião, e expôs as dificuldades diárias na instituição.

Reunião na Uenf com os vereadores: novo acordo firmado, prazos estabelecidos e promessa de comissão na Câmara para acompanhamento.
Reunião na Uenf com os vereadores: novo acordo firmado, prazos estabelecidos e promessa de comissão na Câmara para acompanhamento. / Reprodução/Redes Sociais
Segundo Virgílio, a primeira reunião serviu para organizar o segundo encontro, onde também estiveram presentes representantes da procuradoria da prefeitura e da parte jurídica e técnica da Uenf.

Como resultado desse segundo encontro, ainda segundo o vereador, a Uenf disse que pretende chamar a segunda colocada da licitação feita para a sobrecobertura, uma vez que a primeira, segundo a universidade, não conseguiu comprovar a expertise necessária. Discutiu-se ainda a possibilidade de fazer intervenções emergenciais, pela proximidade do período de chuvas.

Os vereadores decidiram, em concordância com a Uenf, que farão uma “Comissão de Representação” para acompanhar mensalmente o andamento das obras. Para a comissão realmente nascer, Virgílio disse que irá alinhar com os demais colegas para ser apresentado um requerimento na próxima terça-feira (12), em plenário.

A Comissão, caso aprovada, deverá ter fim ainda nesta legislatura, porém há o compromisso de apresentação de novo requerimento, para continuidade da Comissão, na primeira sessão ordinária da Câmara, em 2025.
Reunião na Alerj, uma ano depois do primeiro acordo e firmado e da inércia da Uenf.
Reunião na Alerj, uma ano depois do primeiro acordo e firmado e da inércia da Uenf. / Folha1

Chove no Solar e nos documentos do Arquivo enquanto a novela continua

Embora a entrada da Câmara de Vereadores dê novo fôlego às cobranças de celeridade das obras, já se iniciou em Campos o período de chuvas fortes e intensas, e não há indicativo algum que seja realizado algo efetivo para proteger, a tempo, o patrimônio histórico e o acervo.

Além da Câmara, que tem o dever de agir em interesses públicos dessa monta, é essencial que a sociedade civil também se envolva no assunto. Por ser uma instituição também de memória, garantir seu funcionamento deve ser uma preocupação de todos, além de ser um assunto que envolve dinheiro público.

É louvável que a Câmara entre para a linha de frente, mesmo que de forma tardia, e se proponha a ser um instrumento de solução e não mero apontar de dedos. Aliás, a omissão de alguns pesquisadores, professores, acadêmicos e instituições culturais de Campos dá um bom indicativo para explicar como perdemos tanto em relação ao patrimônio histórico.

É preciso entender que estamos falando de instituições: Alerj, Uenf, Prefeitura, Arquivo e Câmara. Não se trata das pessoas à frente delas, mas sim do papel coletivo que desempenham. E as soluções devem sair da institucionalidade. Deixemos as pessoalidades para quem só aponta dedos.

A simbiose formada pelo Arquivo, Solar e Uenf – O Arquivo Público Municipal está instalado em um solar jesuítico do século 17, que conta parte importante da história de Campos e região. Sob a guarda do Solar e do Arquivo estão documentos de interesse mundial, uma vez que também dizem sobre a diáspora africana, ocorrida principalmente devido ao tráfico transatlântico de escravizados.

O Solar do Colégio tem uma relação próxima com a Uenf desde a instalação da universidade em Campos, uma vez que lá seria a Escola de Cinema, projeto que foi descontinuado e que hoje tenta-se a sua retomada. Passou a ser Arquivo Público por Lei Municipal do vereador Edson Batista.

Localizado em Tocos, na Baixada Campista, é preciso em formas de acessibilidade para o Solar e Arquivo, principalmente após o restauro acontecer, para escolar, pesquisadores, turistas e público em geral. Mas o que garantiu até aqui a sobrevivência de ambos é a simbiose entre instituição e patrimônio.




ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]