O enredo é de novela. Em outubro de 2021, há pouco mais de três anos, a cidade tomava conhecimento (veja aqui) de um acordo que poderia ser a salvação de dois patrimônios históricos importantes, ambos em situação precária, tanto financeira quanto estrutural: o Solar do Colégio e o Arquivo Público Municipal.
O acordo envolvia Alerj, prefeitura de Campos, Uenf e o Arquivo, e repassava parte das economias — dos chamados duodécimos — da Assembleia Legislativa para a universidade estadual, sediada em Campos. Em 15 de dezembro, menos de 2 meses do acordo firmado, a Lei 5.275/2021 autorizava a transferência de R$ 30 milhões do Fundo Especial da Alerj para a Uenf; alguns dias depois o dinheiro estava na conta da universidade.
O Fundo Especial tem lei própria (6.041/2011), onde é definido como os superávits podem ser repassados a outras instituições. Na ocasião do acordo, o art. 2º da lei determinava que os recursos poderiam ir para instituições de ensino e pesquisa, desde que fossem “federais ou estaduais de ensino superior”. Foi apenas em 2022 que a Lei 9.760 incluiu a possibilidade do Fundo repassar recursos diretamente aos “municípios fluminenses” ou a consórcios públicos, como o Cidennf.
Acordo firmado, dinheiro repassado e leis cumpridas. Tudo parecia fluir bem para que o restauro do Solar e a reestruturação do Arquivo, incluindo a digitalização do acervo, acontecessem na prática. Mas não foi bem assim.
Do total dos recursos, a Uenf ficaria com a responsabilidade de aplicar R$ 20 milhões no patrimônio campista e R$ 10 milhões na Fazenda Campos Novos, em Cabo Frio. Porém, as prioridades da reitoria na ocasião foram todas direcionadas ao litoral. As obras em Cabo Frio aconteceram de forma eficiente e célere — dada a complexidade que qualquer restauro de patrimônio histórico impõe. Houve grupos de trabalho com a participação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde o início, e a relação com a prefeitura de Cabo Frio era próxima e azeitada.
Quando o acordo com a Alerj aconteceu, havia uma parceria formalizada entre o poder público municipal e uma associação mineira chamada Sociedade Artística Brasileira (Sabra). Os termos da parceria diziam que a Sabra iria atuar na captação de recursos e na cooperação técnica com fins de restaurar patrimônios históricos em Campos. Na ideia inicial da prefeitura, seria essa associação que tocaria as obras no Solar do Colégio.
A Uenf, novamente com a razão, rechaçou a indicação direta e quis dar transparência na escolha da executora das obras, via licitação pública. E novamente pecou por inércia.
Em novembro de 2022, mais de um ano do acordo, portanto, acontecia uma reunião na Alerj (veja aqui e aqui) com a presença de todos os envolvidos, onde o reitor da Uenf à época surpreendeu a todos com a justificativa pela demora. Segundo ele, seria necessário que a prefeitura contratasse, pagasse e apresentasse o projeto de restauro do Solar.
Conduzindo a reunião, o então diretor administrativo da Alerj, Wagner Victer, sugeriu ao reitor o óbvio: licite o projeto executivo e pague com os R$ 20 milhões depositados.
Saímos da Alerj naquele dia (eu estive presente como jornalista e ativista cultural) com outro acordo firmado. No prazo de 30 dias, a Uenf faria a licitação do projeto executivo com previsão orçamentária e o processo imediato de contratação da digitalização do acervo histórico do Arquivo Público Municipal.
A ideia a partir daí, por indicação do Iphan, foi construir uma estrutura metálica externa ao Solar, que não alterasse sua estrutura mas que o protegesse das chuvas e outras intempéries enquanto o restauro total não acontecesse. Novamente, acertava-se na decisão e pecava-se na letargia.
A segunda licitação, dessa vez para construir a sobrecobertura, só seria publicada em 9 de julho de 2024, no valor de R$ 1,7 milhão (veja aqui). Por ironia do destino — e para dar mais cara de enredo de novela —, a empresa ganhadora desse segundo processo licitatório é ligada diretamente à Sabra, a SVG Construções e Consultoria Ltda.
Vereadores entram no enredo novelístico
A atual reitora, Rosa Rodrigues, e a equipe de licitação da Uenf, receberam os vereadores Juninho Virgílio, Kassiano Tavares e Fábio Ribeiro (que é servidor da universidade licenciado), além do chefe de gabinete do vereador Edson Batista, Fernando Machado. A diretora do Arquivo, Rafaela Machado, participou do segundo dia de reunião, e expôs as dificuldades diárias na instituição.
Como resultado desse segundo encontro, ainda segundo o vereador, a Uenf disse que pretende chamar a segunda colocada da licitação feita para a sobrecobertura, uma vez que a primeira, segundo a universidade, não conseguiu comprovar a expertise necessária. Discutiu-se ainda a possibilidade de fazer intervenções emergenciais, pela proximidade do período de chuvas.
Os vereadores decidiram, em concordância com a Uenf, que farão uma “Comissão de Representação” para acompanhar mensalmente o andamento das obras. Para a comissão realmente nascer, Virgílio disse que irá alinhar com os demais colegas para ser apresentado um requerimento na próxima terça-feira (12), em plenário.
A Comissão, caso aprovada, deverá ter fim ainda nesta legislatura, porém há o compromisso de apresentação de novo requerimento, para continuidade da Comissão, na primeira sessão ordinária da Câmara, em 2025.
Chove no Solar e nos documentos do Arquivo enquanto a novela continua
Além da Câmara, que tem o dever de agir em interesses públicos dessa monta, é essencial que a sociedade civil também se envolva no assunto. Por ser uma instituição também de memória, garantir seu funcionamento deve ser uma preocupação de todos, além de ser um assunto que envolve dinheiro público.
É louvável que a Câmara entre para a linha de frente, mesmo que de forma tardia, e se proponha a ser um instrumento de solução e não mero apontar de dedos. Aliás, a omissão de alguns pesquisadores, professores, acadêmicos e instituições culturais de Campos dá um bom indicativo para explicar como perdemos tanto em relação ao patrimônio histórico.
É preciso entender que estamos falando de instituições: Alerj, Uenf, Prefeitura, Arquivo e Câmara. Não se trata das pessoas à frente delas, mas sim do papel coletivo que desempenham. E as soluções devem sair da institucionalidade. Deixemos as pessoalidades para quem só aponta dedos.
O Solar do Colégio tem uma relação próxima com a Uenf desde a instalação da universidade em Campos, uma vez que lá seria a Escola de Cinema, projeto que foi descontinuado e que hoje tenta-se a sua retomada. Passou a ser Arquivo Público por Lei Municipal do vereador Edson Batista.
Localizado em Tocos, na Baixada Campista, é preciso em formas de acessibilidade para o Solar e Arquivo, principalmente após o restauro acontecer, para escolar, pesquisadores, turistas e público em geral. Mas o que garantiu até aqui a sobrevivência de ambos é a simbiose entre instituição e patrimônio.
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