Iphan, prefeitura, família Lamego e a Ferroport: Solar dos Airizes ainda vive
Edmundo Siqueira 05/07/2023 20:15 - Atualizado em 05/07/2023 20:24
Solar dos Airizes em seu estado atual. A majestosa construção com ameaça de ruína.
Solar dos Airizes em seu estado atual. A majestosa construção com ameaça de ruína. / Bruno Salles
Campos dos Goytacazes sempre teve vocação para produzir histórias de valor para todo país — um campista negro chegou à presidência, a livraria mais antiga do Brasil, o segundo maior canal artificial do mundo, a primeira energia elétrica pública da América Latina, o terceiro jornal mais antigo e um dos principais abolicionistas da história. E um icônico Solar às margens do rio Paraíba, na BR-356 (Campos x Atafona).

O Solar dos Airizes — ou “casarão da escrava Isaura”, ou “casa dos Lamegos” — é um bem de alto valor histórico e cultural, o primeiro a receber tombamento federal em Campos, ainda em 1940, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Apesar do tombamento e de seu valor nacional, o Solar dos Airizes está em estado de abandono há décadas, e a cada ano perde uma parte significativa de suas paredes e esquadrias. Garantir que ele não venha à ruína completa é uma obrigação legal da prefeitura, do Iphan e da família Lamego, atual proprietária do Solar. E principalmente um direito difuso dos campistas.

A prefeitura e a Ferroport

Para cumprir o que determina o acórdão de número 402-28.2008.4.02.5103 do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região — sentença que não cabem mais recursos ou embargos e determina o restauro imediato do Solar — a prefeitura buscou a iniciativa privada.

Na última terça-feira (4), foi assinado um Protocolo de Intenções entre o ente municipal e a Ferroport, joint-venture formada pela mineradora sul-africana Anglo American e pela Prumo Logística, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. Desde de maio deste ano, a empresa integra o Grupo de Trabalho (GT) criado pelo prefeito Wladimir Garotinho para definir os estudos e ações relativos à restauração do Solar dos Airizes.
Assinatura do protocolo de intenções entre a prefeitura e a Ferroport.
Assinatura do protocolo de intenções entre a prefeitura e a Ferroport. / PMCG


A ação judicial que condenou a prefeitura de Campos a restaurar o Solar foi proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2008, em face do município e de Nelson Luiz Lamego. Durante o curso do processo foi acatado a incapacidade alegada pelo herdeiro da família Lamego em restaurar o bem, e determinado que a municipalidade promova, não apenas o restauro, como o uso do patrimônio. Mas nada impede que a prefeitura busque parceiros para cumprir a decisão.

“O protocolo tem como objeto envidar os esforços necessários para elaboração de projeto que possibilite angariar recursos por meio dos instrumentos dispostos na Lei 3.813/91, para a realização do projeto e da obra referente ao restauro do Solar dos Airizes, bem como a manutenção de acervo cultural de interesse público”, disse Isabelle Silva, assessora de comunicação da Ferroport, a esta coluna, via e-mail.

Sobre o processo judicial, Isabelle informou que “a minuta do protocolo de intenções já foi juntada aos autos pela prefeitura, como conteúdo informativo ao Ministério Público”, e sobre o uso do Solar dos Airizes após a restauração, disse que “a Ferroport entende que a interseção cultural entre a sociedade e o bem tombado deve ser realizada pela prefeitura”.

Como bem tombado pelo Iphan e ainda de propriedade da família Lamego, qualquer intervenção deve ser feita após anuência de ambos. Embora tenha ciência dessa necessidade, a Ferroport informou que não se envolverá nessa questão, atuando "exclusivamente no auxílio ao patrocínio cultural". Mas lembra que a área foi decretada como de interesse público por meio do Decreto Municipal 473/2021, e que “os próximos passos estão sendo tomados pela Procuradoria do município”.

A família Lamego

A importância do Solar dos Airizes não reside apenas em sua beleza arquitetônica. Por muito tempo o local foi considerado uma “meca” — um local sagrado — de conhecimento e cultura por muitos intelectuais brasileiros. Sendo residência de Alberto Lamego (pai e filho), o Solar foi palco para a criação das mais importantes obras sobre a história de Campos e região, depois de ter sido recolhido um vasto acervo garimpado na Europa, levando a produção de conhecimentos fundamentais para compreender os processos de formação do território fluminense.

Reprodução Foto: João Pimentel
Além do acervo cartográfico e documental, uma incrível pinacoteca conferia ao Solar dos Airizes a condição de guardião da cultura, intelectualidade, arte e conhecimento geográfico do Norte Fluminense. No Solar hospedaram-se nomes como Mário de Andrade e o imperador D. Pedro II.


A família Lamego manteve-se como proprietária do Solar, e tentou vender o Solar em algumas ocasiões, mas tendo o tombamento federal como um dificultador. Para a efetivação do restauro proposto pela prefeitura e a Ferroport, a propriedade do bem deverá ser resolvida.
Também a este espaço, representante dos proprietários informou que pretende doar o prédio à municipalidade:

“O subprocurador nos procurou e nos colocamos à disposição, inclusive para a doação do prédio. Nosso interesse, como o de todos, é a preservação do bem”, informou um dos herdeiros. Perguntado sobre o prazo de concretização da doação, informou que depende da procuradoria do município.

O Iphan

Enquanto era feita a assinatura do Protocolo de Intenções, uma equipe técnica do Iphan vistoriava o Solar dos Airizes. Em Campos para visitas técnicas nos imóveis tombados pelo órgão, o Iphan informou, via e-mail, que “o técnico do Iphan não estava no momento da assinatura”.

Ao menos três processos administrativos, com o Solar dos Airizes como objeto, tramitam no Iphan. Neles há o histórico de todas tratativas do órgão federal com os proprietários e os documentos produzidos pelos técnicos, que evidenciam a evolução da destruição no Solar.
Reprodução Foto: João Pimentel
Sobre a parceria da prefeitura com a Ferroport, a assessoria disse que “o Iphan celebra as iniciativas para valorizar o patrimônio cultural”, e que o instituto é “o órgão fiscalizador responsável pelo Patrimônio Cultural Brasileiro, cabendo fiscalizar o bem cultural, aprovar projetos de intervenções e orientar o proprietário na conservação do bem tombado”.

No caso do Solar dos Airizes, como patrimônio cultural e propriedade tombada, caberia aos proprietários “promover obras de conservação e restauro, bem como zelar pela manutenção do monumento”, informou a assessoria do Iphan. Porém, por decisão judicial, a prefeitura de Campos assumiu essa condição, pelo entendimento do valor coletivo que o bem carrega consigo.
O Iphan deverá informar, via nota, os resultados das visitas desta semana à cidade. 

O Airizes vive — e deve viver

Alberto Lamego, depois de retornar ao Brasil trazendo na bagagem uma rara biblioteca brasiliana e vastíssimo acervo documental acumulado por ele durante os anos de pesquisa, em especial nos arquivos portugueses, passou a viver com a família no Solar dos Airizes. O imponente Solar, construído em sua forma atual em princípios do século XIX pelo comendador Cláudio do Couto e Souza, foi herdado por ele após o casamento com uma das filhas. 
Além de todos os fatos e lendas que acompanham o Solar, mantê-lo de pé significa aos campistas — e fluminenses — conhecer os processos de formação da região, o papel das grandes fazendas e a problematização necessária do abuso de pessoas escravizadas.

A despeito da passividade dos campistas e dos governantes sobre a expatriação de acervos e ruínas de diversos patrimônios históricos, o Airizes resiste bravamente, mas dá evidentes sinais que não resistirá por mais tempo. E com ele toda chance de valorização cultural e de educação patrimonial se esvai.

A gestão municipal atual tem a chance e a obrigação de fazer história, e se contrapor ao habitual descaso de Campos com seus tesouros, que são de todo país. A parceria com a Ferroport é um primeiro passo, que deve ser seguido de muitos outros, inclusive da abertura da discussão à sociedade civil. Campos e o Brasil agradecem.

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