Bolsonaro não é a causa, é a consequência - profundezas de um Brasil profundo
15/04/2021 12:59 - Atualizado em 15/04/2021 13:06
As desigualdades e perversidades brasileiras, essencialmente relacionadas com a escravidão e com o extermínio humano-cultural indígena, mas também com acontecimentos da história recente. Brasília, 19-01-2018. Foto: Sergio Lima/Poder 360.
As desigualdades e perversidades brasileiras, essencialmente relacionadas com a escravidão e com o extermínio humano-cultural indígena, mas também com acontecimentos da história recente. Brasília, 19-01-2018. Foto: Sergio Lima/Poder 360.
 
Não podemos atribuir ao Bolsonaro todas as mazelas visíveis do país — quem dirá as invisíveis. Bolsonaro não é a causa de um país que faz manifestação contra vacina. É a consequência. É preciso lembrar que as eleições de 2018 levaram milhões de pessoas a votar em um candidato que nunca escondeu o que era. Bolsonaro é — e nunca deixou de ser — alguém incapaz de viver ao abrigo de regras civilizatórias.
Se disserem que o voto em Bolsonaro foi por desconhecimento, a poucos convencem. Quando o então deputado disse que não estupraria uma mulher, apenas por ela não merecer (2003) foi dado ampla divulgação. Quando lamentou que a ditadura tivesse apenas torturado muitas pessoas, sem provocar a morte (2016), foi exposto. Ao comparar um “afrodescendente” com bovinos e suínos (2017), dizendo que os pesava em arrobas, todos os jornais noticiaram. Quando disse que seria incapaz de amar o próprio filho caso fosse gay (2011), ou que teria dado uma “fraquejada” ao ter uma filha mulher (2017), foi publicado. E todos tiveram conhecimento quando o agora presidente enalteceu a memória de um torturador de mulheres e crianças, no Congresso Nacional (2016). Não foi por desconhecimento. Sabia-se quem se estava conduzindo à presidência.
As senhoras de classe média alta que levantaram placas dizendo “não é pandemia, é comunismo”, em Copacabana no último domingo (11), são o reflexo não-invertido em um espelho social de baixíssimo exercício democrático e falência educacional e cultural. O Brasil é um país construído através de golpes. O grito “independência ou morte!” às margens do Rio Ipiranga (que jamais ocorreu, na verdade), em 1822, foi resultado de um movimento sem participação popular, para o Brasil continuasse dependente e escravista — 1920, a revolução de 30, o Estado Novo em 37 e Vargas em 45 são todos golpes e autogolpes concebidos no seio da elite financeira e das forças armadas. Assim como 64, que impôs ao país um regime ditatorial por mais de 21 anos. Apesar de vivermos o mais longo período democrático de nossa República, a sociedade brasileira ainda é estruturada em bases preconceituosas, violentas e autoritárias.
  • "Marcha da Família Cristã", na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em 2021.

  •  Manifestações em Copacabana - anticomunismo anacrônico, relacionando com a pandemia do coronavírus. Delírio coletivo.

    Manifestações em Copacabana - anticomunismo anacrônico, relacionando com a pandemia do coronavírus. Delírio coletivo.

  • "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" foi o nome dado a uma série de manifestações públicas ocorridas em 1964 no Brasil, em resposta ao que foi considerado, por militares e setores conservadores da sociedade, uma ameaça comunista.

  • "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" foi o nome dado a uma série de manifestações públicas ocorridas em 1964 no Brasil, em resposta ao que foi considerado, por militares e setores conservadores da sociedade, uma ameaça comunista.

Embora estejam expostas nos nossos tecidos sociais as desigualdades e perversidades, sendo essencialmente relacionadas com a escravidão e com o extermínio humano-cultural indígena, a proposta aqui é fazer um recorte, temático e temporal, que tem início na Era Vargas. O Brasil atravessava nos anos 1930 um período que marcaria sua história e as futuras relações de poder. Os “senhores do café” declinavam e ascendia uma burguesia industrial. Crescia também o proletariado urbano. Diante do aumento das complexidades e da vida urbana, o Estado tenta se firmar e definir sua atuação.
E eis o ponto que se mostra determinante para entender o momento atual do país: a ameaça comunista. Duas potencias antagônicas venceram a Segunda Guerra. Estados Unidos e União Soviética, após derrotar o nazismo em 1945, passaram de aliados situacionais a inimigos mortais. Mais que apenas dois países, duas ideologias estavam em jogo. Anos mais tarde, a queda do Muro de Berlim marcava o fim do comunismo e o triunfo do capitalismo. Embora existam alguns países considerados comunistas, a ideologia arrefeceu consideravelmente. No Brasil, o comunismo teve sua expressão máxima na Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada por Luís Carlos Prestes. A ALN inicia-se como um grupo político de orientação comunista, convertendo-se em um movimento que buscava tomar o poder pela via revolucionária. Do outro lado, se posicionava o grupo de Plínio Salgado, a Ação Integralista Brasileira (AIB), de extrema-direita, com inspiração no fascismo italiano, expressando valores nacionalistas e preconceituosos.
Em ‘Terras Brasilis’, o comunismo nunca teve força, muito menos institucionalidade. Na contemporaneidade, são praticamente nulas as manifestações comunistas. Porém, Bolsonaro, como todo líder populista, principalmente os em declínio, se apresenta como o responsável por cumprir as vontades do povo na luta contra um inimigo em comum da sociedade, e usa o comunismo na sua retórica como esse “mal a ser combatido”. O problema é que além de anacrônico, mesmo que inexistam grupos político de expressão no Brasil que sejam comunistas — mesmo os autodeclarados pouco o são, de fato. Por que, então, a narrativa consegue manter-se de pé entre os que apoiam o presidente?
É preciso entender a gênese do bolsonarismo.
Considerada um das escolas mais rigorosas de formação militar, a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, formou não apenas o presidente e seu vice, como alguns de seus ministros, como Tarcísio Gomes, da Infraestrutura e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional. Apesar de Bolsonaro estar distante da caserna há mais de 30 anos, sua atuação sempre foi intimamente ligada à defesa de classe das Forças Armadas. A insistência bolsonarista ao impor sua narrativa combatendo um inimigo que não existe, demonstra que há arcaísmo na formação militar, onde generais de pijamas, de óbvia influencia na ativa, ainda estão com a cabeça enfiada no mundo bipolar da Guerra Fria, fabricando uma oficialidade que procura comunistas debaixo da cama.
Esse histórico traz parte da compreensão de como funciona a estrutura da cúpula política do governo Bolsonaro, e de como o militarismo confunde-se com o plano de poder em curso. Mas, ainda ficam lacunas a preencher quando se pretende compreender um anticomunismo presente também entre os civis que seguem o “mito”. É possível se pensar em como o péssimo histórico das experiências comunistas no mundo deixam marcas no imaginário popular. As democracias liberais produziram desigualdade e miséria, mas não se comparam aos regimes ditatoriais produzidos pelo comunismo — assim como pela extrema-direita, que os nazistas personificaram. Porém, teriam os bolsonaristas — de maioria iletrada e ponto focal de notícias sobre medicamentos sem comprovação científica e presença de nanochips nos líquidos das vacinas —, conhecimento histórico suficiente? Uma negativa parece ser a resposta mais factível. O mais razoável é pensar que a ameaça comunista é uma fábula em embala adultos, emocionalmente imaturos e intelectualmente limitados, que acreditam no “homem do saco”.
A justificativa mais provável está no ‘Brasil profundo’. A história pessoal do presidente se confunde com boa parte de seus apoiadores. Bolsonaro nasceu no interior paulista, família de imigrantes italianos, alijada da classe média, que não prosperou social, econômica tampouco culturalmente. Sentiam-se acima de grupos historicamente relegados à exclusão. Negros, índios, homossexuais e pessoas em vulnerabilidade extrema. O que explica a necessidade de humilhar, torturar e até matar. Indivíduos frustrados que sempre se sentiram diminuídos. É possível perceber que as Polícias e as Forças Armadas se tornaram caminhos naturais para extravasar essas necessidades, mas as frustrações são exercidas cotidianamente, evidenciadas nas críticas atuais à ciência, cultura, serviço público e universidades.
Os governos do PT — que merecem inúmeras críticas — produziram inegáveis inclusões sociais históricas (pouco trouxeram da real cidadania e pouco promoveram de reais mobilidades na estratificação social, mas esta é uma outra discussão). E isso causou ódio. Perfeitamente compreensível em um país com origens tão preconceituosas e violentas. Brasileiros ‘pretos de tão pobres e pobres de tão pretos’, para citar Gilberto Gil, incomodaram quando ocuparam espaços. Empregadas domésticas em aeroportos irritaram mais do que pudemos supor. Por óbvio, índices menores de desigualdades não são conquistas petistas, apenas. O plano real, capitaneado pelo PSDB, também produziu condições mais justas. Foi resultado de uma construção histórica, que sempre carregam fatores que não cabem em uma narrativa apenas. Assim como acontece nas vivências que nos trouxeram a esse atual estado de coisas.
  • O nazismo recebeu forte apoio popular na Alemanha. Com um discursos nacionalista e exaltando as injustiças que o país sofreu, Hitler recebeu carta branca para cometer atrocidades.

    O nazismo recebeu forte apoio popular na Alemanha. Com um discursos nacionalista e exaltando as injustiças que o país sofreu, Hitler recebeu carta branca para cometer atrocidades.

  • "Marcha da Família Cristã", na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em 2021.

  • O nazismo recebeu forte apoio popular na Alemanha. Com um discursos nacionalista e exaltando as injustiças que o país sofreu, Hitler recebeu carta branca para cometer atrocidades.

    O nazismo recebeu forte apoio popular na Alemanha. Com um discursos nacionalista e exaltando as injustiças que o país sofreu, Hitler recebeu carta branca para cometer atrocidades.

Caso não caiamos em um regime totalitário, como nos exemplos “comunistas” da Rússia e da China, a alternância do poder acontecerá, cedo ou tarde, e Bolsonaro fará parte do passado, respondendo por seus crimes. Mas, passarão as concessões morais feitas por milhões de brasileiros para apoiá-lo e segui-lo cegamente, uma vez que não se pode alegar desconhecimento das atrocidades de antes e depois das eleições? Busquemos como exemplo a Alemanha nazista, que deixou feridas abertas até a atualidade, para o mundo e para os alemães. Embora Bolsonaro, personificando mais uma vez seu personagem de vida, tenha ficado na dúvida se seria Hitler de direita ou de esquerda (2019), o Führer alemão está caracterizado pela história como sendo de extrema-direita. Stálin, líder soviético, também é assinalado como extremista, mas do “outro lado”, preparou as bases para enterrar de vez o comunismo. A questão não é posicionamento ideológico, o que deve ser combatido é qualquer extremo, seja qual coloração vista.
A democracia venceu na Segunda Guerra. Vencerá a guerra de narrativas no Brasil? Talvez, quem ainda tenha respostas a dar sobre o Brasil do passado e do futuro, vista uniforme verde-oliva. Quando vamos nos livrar dessa dependência funesta, de sucessivos golpes, do delírio anticomunista e quando as Forças Armadas deixarão definitivamente a política, como determinam as democracias modernas? Difícil prever, mas quando o sonho do oprimido deixar de ser tornar-se o opressor, e a educação, enfim, cumpra seu papel libertador, teremos melhores perspectivas.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com

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