Quando a Prefeitura de Campos encerrou, em 2012, as atividades do antigo lixão da Codin, transferindo os resíduos sólidos urbanos (RSU) para o aterro sanitário, tivemos um avanço importante do ponto de vista da saúde pública e do ambiente. Mas, para centenas de catadores e catadoras de materiais recicláveis, a mudança decretou o fim daquele que era o seu meio de vida por mais de duas décadas. Mesmo sem carteira assinada e em condições insalubres, o trabalho no lixão propiciava ganhos diários e autonomia quanto ao tempo de trabalho, à comercialização e à proximidade com a moradia — o que era crucial para as mulheres, quase sempre responsáveis pelos cuidados da família e da casa.
De 2012 até hoje, o movimento dos catadores avançou reivindicações importantes em Campos, como a criação das cooperativas, a construção dos galpões com alguns equipamentos e a recepção da coleta seletiva local, antes doada a uma ONG. Mas eles continuam longe de conquistar autonomia para enfrentar a precarização, a rotatividade e os baixos rendimentos.
Em 2020, com a pandemia da Covid-19, os rendimentos dos catadores foram impactados com o fechamento das escolas e do comércio de rua. O prolongamento da pandemia e os problemas relativos à sua gestão promoveram um encolhimento do mercado de trabalho, atingindo especialmente as ocupações que envolvem menor escolaridade e renda, como serviços domésticos, alojamento e alimentação e construção — conforme dados do IBGE referentes à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) de 2020. Segundo a mesma fonte, a população desocupada chegou a 12,7 milhões de pessoas; entre as que tinham ocupação, 37,6% estavam na informalidade. Muitos desempregados, dentre eles jovens sem expectativa de trabalho, optaram pela coleta de recicláveis nas ruas e lixões.
Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (Snis), em 2022 o Brasil gerou 63,8 toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU), que popularmente chamamos de lixo. Em média, cada habitante do nosso país gerou quase um quilo (0,98 kg) de resíduos desse tipo por dia. Enquanto 80% desses materiais são enviados para os aterros sanitários, 7% sequer são coletados e, portanto, são descartados de maneira inadequada e/ou queimados, contrariando a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei 12.035/2010. No que se refere à coleta seletiva, ela está presente em menos de um terço (32,2%) dos 5.570 municípios brasileiros. Em Campos, segundo informações da Vital Engenharia, em 2022, o município gerou mais de 90 mil toneladas de RSU, o equivalente a pouco mais de meio quilo de lixo por pessoa a cada dia.
Do material que é recolhido pela coleta tradicional — em que os recicláveis estão misturados com o resíduos orgânicos —, de cinco a sete caminhões por semana são cedidos à Cooperativa Nova Esperança, na Codin; o restante é encaminhado para o aterro sanitário perto de Conselheiro Josino. Ainda que o aterro cumpra a sua função de receber adequadamente os resíduos sólidos da cidade, uma boa parcela deles é composta de materiais recicláveis, que, segundo a política nacional definida para o setor, não poderiam estar no aterro, já que ainda podem ser reutilizados e/ou reciclados. A solução mais adequada é a separação do resíduo seco (reciclável) do molhado (orgânico) ainda no domicílio ou comércio e o seu recolhimento pela coleta seletiva com a participação das organizações de catadores, o que, além de contribuir com o ambiente, gera trabalho e renda para milhares de pessoas.
Segundo a política nacional instituída em 2010, os municípios são os responsáveis pela realização da coleta seletiva e devem priorizar a contratação de cooperativas e/ou associações de catadores ou de trabalhadores em situação de vulnerabilidade. Essa é principal bandeira de luta dos catadores e catadoras de recicláveis de Campos!
No Brasil 39,4% da coleta seletiva é realizada pelas organizações de catadores, contratadas formalmente ou não para a prestação deste serviço ambiental urbano, conforme dados da pesquisa Ciclosoft 2023, realizada pela associação sem fins lucrativos Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre). Ainda segundo o Cempre, dados de 2023 do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento indicam que apenas 1.211 municípios brasileiros (21,7% do total) realizam coleta seletiva para pelo menos metade da sua população — uma prática que precisa melhorar diante dos desafios impostos pela crise climática e urbana. Segundo o IBGE, o número de catadores informais passou de 180,5 mil em 2014 para 268 mil em 2018, um crescimento de 48%, conforme relato da jornalista Thaís Carrança no jornal Valor Econômico de 10/05/19.
Para o Movimento dos Catadores, no entanto, os números podem ser bem maiores, já que nem todos os catadores consideram a coleta de recicláveis como sua atividade principal, levando a uma subnotificação deste indicador. De qualquer forma, os dados revelam não só o aumento no quantitativo de catadores nos anos de crise do emprego e de avanço da extrema pobreza, como também o significado desta atividade para a reprodução social das famílias de trabalhadores mais vulnerabilizados e desprotegidos socialmente.
Cabe registrar que, embora prestem um serviço ambiental muito mais amplo, os catadores só recebem — e muito pouco! — pela parte do material coletado que é adquirida pela indústria. O papelão que, por hipótese, tenha sido comprado pela indústria ao comerciante intermediário por R$ 1 foi antes negociado por R$ 0,50 com o comerciante de bairro, que, por sua vez, comprou da cooperativa de catadores por R$ 0,30 ou até menos, se ele for um catador individual de rua. Trata-se de uma atividade sem custos e responsabilidades tanto para o setor produtivo, que tem lucrado cada vez mais com a superexploração dos catadores, quanto para os governos, que não reconhecem o trabalho ambiental urbano realizado por este segmento social.
Enquanto lugar de trabalhadores empobrecidos, a coleta de recicláveis resiste ao tempo e ao “desenvolvimento”, demonstrando que, depois de tantos anos, ela continua absorvendo parcela significativa da classe atingida pelo desemprego estrutural-tecnológico, ou seja, por aquele desemprego causado pelas inovações tecnológicas e que persiste com ou sem crescimento econômico, particularmente nas economias dependentes como a do Brasil. Detalhe importante: a existência dos catadores de recicláveis e de pessoas exercendo outras ocupações de menor prestígio sem nenhuma regulação e proteção trabalhista não tem nada de disfuncional. Essas pessoas não são “excluídas” do processo produtivo. Ao contrário, os catadores cumprem papel estratégico na consolidação, lucratividade e expansão da cadeia produtiva da reciclagem.
Quanto maior e mais duradouro for o desemprego e a necessidade de sobrevivência de trabalhadores, maior será a força de trabalho disponível para esta e quaisquer outras atividades insalubres, inseguras, precarizadas e de baixíssima remuneração e/ou em situação análoga à escravidão.
Em síntese, ao apresentar a preocupação da sociedade brasileira, com a redução do consumo e com a recuperação e reciclagem dos RSU, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi fundamental para a regulação desta atividade, chamando a atenção para a responsabilidade dos governos, das empresas e da sociedade com práticas mais sustentáveis e justas. Ao recuperar o papel histórico dos catadores, a PNRS aponta os caminhos para a integração de suas organizações na política municipal de resíduos sólidos, particularmente na coleta seletiva, na educação ambiental e na logística reversa (o caminho inverso dos resíduos do ponto de consumo para o ponto de origem).
Cabe perguntar se os(as) candidatos(as) a governar nossa cidade pretendem implementar uma política de resíduos sólidos em conformidade com a Lei 12.305/2010, contratando as cooperativas de catadores para a realização da coleta seletiva local, ou se vão continuar negligenciando a coleta seletiva com a participação dos catadores no enfrentamento da questão ambiental, climática e social que aflige o nosso município.
Érica Almeida é professora associada do curso de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas da UFF Campos dos Goytacazes, um dos parceiros do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles. A autora é também coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Dinâmica Capitalista e Ação Política (Netrad).
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