Transporte público gratuito na agenda da mobilidade urbana
Érica Tavares - Atualizado em 12/07/2024 18:41
IMTT
Movimentar-se no espaço é uma ação primordial para garantir o acesso a lugares, recursos, equipamentos e oportunidades por parte da população. Por isso, as políticas e ações que visem melhorar as condições de mobilidade são essenciais para a ampliação desse acesso.
No cenário das políticas urbanas na primeira década do século XXI, sob os princípios do Estatuto das Cidades, da Criação do Ministério das Cidades, esse termo “mobilidade urbana” passou a ser bastante difundido no país, situando o debate e as ações para além das questões de trânsito e transporte. Os serviços de mobilidade urbana no Brasil são de competência do município, mas devem atender às orientações legais colocadas em nível federal, como a Lei de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12).
A agenda política para uma mobilidade urbana com potencial de transformação precisa considerar a diversidade urbana brasileira, as desigualdades, as injustiças sociais e ambientais. A mobilidade é primordial para vislumbrarmos cidades mais justas, democráticas, inclusivas e ambientalmente sustentáveis. Não há dúvidas entre os estudiosos do tema que a mobilidade é uma dimensão central para enfrentar os desafios ambientais relacionados às mudanças climáticas, uma vez que boa parte das emissões de CO2 se dá através do transporte motorizado.
Assim, também é preciso superar o modelo de planejamento do setor baseado na automobilidade, o que está ligado à ampliação e diversificação de infraestruturas. Já do ponto de vista social e econômico, precisamos muito questionar o modelo de prestação do serviço e o modelo de financiamento prevalecente em boa parte dos municípios brasileiros.
Nessa pegada, tem ocorrido um amplo movimento no Brasil para discutir as ações no setor. Podemos destacar a Coalizão Mobilidade Triplo Zero, uma “rede de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e pesquisadores que surge com a perspectiva de apresentar saídas para a superação da crise da mobilidade que afeta o Brasil e lutar por garantir mais democracia e acesso a direitos sociais”. O “triplo” refere-se a três dimensões: zero tarifa, zero emissões de poluentes e zero mortes no trânsito, focando nos aspectos econômicos, sociais e ambientais relacionados à mobilidade.
No que se refere aos custos do transporte, um dos principais problemas para acesso ao sistema são as altas tarifas, aliadas a má qualidade dos serviços de transporte público, falta de financiamento para a criação de infraestrutura adequada, ausência de transparência sobre os custos das empresas concessionárias do transporte público, falta de fiscalização.
Ao problematizar o assunto, tem crescido no Brasil o debate e as iniciativas em torno da tarifa zero. Os formatos de implementação atuais são diversificados, assim como a fonte dos recursos. Até levantamento de junho de 2024 no site da Coalização Triplo Zero são 106 municípios no país que já apresentam a tarifa zero, sob diferentes articulações e formatos. É fundamental pontuar que a proposta não envolve simplesmente transferir recursos para as empresas, mas reconstruir o modelo de financiamento e prestação do serviço.
Aliada a essa ideia, desde maio de 2023, está tramitando no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 25/2023) para instituir o SUM (Sistema Único de Mobilidade), que poderá integrar o transporte público de todo o país. A iniciativa foi articulada pela Coalizão Mobilidade Triplo Zero e diversas entidades e apresentada pela deputada federal Luísa Erundina, com o seguinte teor: “Acrescenta o Capítulo IX ao Título VIII para oferecer diretrizes sobre o direito social ao transporte previsto no art. 6º e sobre o Sistema único de Mobilidade e autoriza a União, Distrito Federal e Municípios a instituírem contribuição pelo uso do sistema viário, destinada ao custeio do transporte público coletivo urbano”.
O projeto prevê maior participação nas decisões no setor de mobilidade, transparência na destinação e aplicação dos recursos, novas fontes de financiamento para que os custos não sejam apenas na esfera dos municípios, e que sejam mais focados no transporte público e na mobilidade ativa.
Na região norte fluminense, ainda há pouco debate nesse sentido. Segundo mapeamento coletivo organizado por Daniel Santini, vinculado a Coalizão Triplo Zero, no ERJ são 13 (dos 92 municípios) com alguma experiência relacionada à Tarifa Zero. Na região norte fluminense, o levantamento traz as iniciativas recentes de São João da Barra e São Fidélis, no NF – municípios com 38,9 e 36,5 mil habitantes que lançaram a experiência da gratuidade no transporte público – cenário ainda a acompanhar.
Impossível não mencionar que o histórico recente das políticas urbanas dos municípios da região foi fortemente influenciado pelas rendas advindas dos royalties do petróleo, porém de forma contraditória, com abundância de recursos sem planejamento de longo prazo e redução das desigualdades. Maricá e Niterói (atualmente as bilionárias no recebimento destes recursos) assumem que estão num esforço para não repetir os erros dos municípios do norte fluminense. Aliás, Maricá figura entre os municípios com expressiva experiência na implementação de uma política de tarifa zero, desde 2014.
Já o município de Campos, por exemplo, o maior município em extensão territorial do estado e o maior em população do interior, apresenta inúmeros desafios relativos ao sistema de mobilidade urbana, com expansão de sua área urbana e persistente dificuldade de integração entre os subdistritos e mesmo bairros da área urbana. Os recursos dos royalties neste município financiaram políticas que tiveram grande impacto sobre o espaço urbano, como o Programa Habitacional Morar Feliz, a Política do transporte a 1 real, entre outras.
Esta última, implantada em 2009, foi denominada Programa Campos Cidadão, uma política que realmente aumentou o número de passageiros e o número de viagens realizadas no município. Durante sua vigência, vários ajustes foram realizados por meio de novos decretos e leis, com alterações no preço original da passagem para quem não estava no programa. Mas sua interrupção ocorreu por completo em 2017 quando assumiu uma gestão diversa ao grupo político que estava nos governos anteriores. O programa se aproximou de um modelo de tarifação subsidiado pelo poder público, mas, apesar de ampliar o acesso ao transporte, não apresentou melhorias amplas no sistema. De todo modo, suas falhas e potencialidades constituíram um considerável experimento para pensar o modelo de financiamento e de prestação do serviço, assim como o papel do transporte público no município.
Sabemos que os desafios são imensos para pensar no aprofundamento do acesso à cidade via transporte público gratuito, mas os caminhos estão sendo trilhados e já temos muitas experiências nessa linha. Claro que o debate em nível nacional também é fundamental, como a proposição do SUM. Importa destacar que não adianta apenas zerar a tarifa, é preciso fomentar uma agenda de mobilidade com participação nas decisões, transparência na destinação e aplicação dos recursos, novas fontes de financiamento para que os custos não sejam apenas na esfera dos municípios, controle e fiscalização dos prestadores e foco no transporte público e na mobilidade ativa com um sistema de mobilidade e infraestrutura mais sustentável.
Portanto, a questão da mobilidade urbana sustentável é tema central para o debate político no cenário pré-eleitoral atual, reconhecendo sua relação com outras políticas como habitação, segurança, meio ambiente, saúde, desenvolvimento econômico e social. Candidatos e candidatas aos executivos e legislativos municipais precisam responder o que pensam e o que propõem sobre este tema que define em grande medida o cotidiano de nossas cidades.

* Érica Tavares é professora da UFF Campos, pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do Núcleo de Estudos Socioambientais da UFF

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