Carlos Frederico Rangel de Almeida e Ribeiro Juliana Santos Alves de Souza
- Atualizado em 21/06/2024 18:44
No cenário de eleições municipais, os problemas urbanos ganham destaque no debate público e são incorporados às propostas de governo. Um deles é a falta de saneamento básico, que é responsabilidade dos municípios e há décadas vem suscitando discussões sobre possíveis soluções técnicas e financeiras, sempre demandando investimentos volumosos.
Quando falamos em saneamento, estamos nos referindo não apenas aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, mas também à gestão de resíduos sólidos (“lixo”) e à drenagem das águas pluviais. Cada um deles possui sistemas particulares, com suas próprias complexidades, assim como envolve diferentes formas de gestão, o que pode levar a uma desmunicipalização, isto é, à transferência da prestação dos serviços para uma concessionária estadual ou privada. Diversos motivos são alegados para explicar essa decisão. Os mais comuns são a baixa capacidade institucional, com pouco ou nenhum corpo técnico qualificado que se responsabilize diretamente por esses sistemas, e a falta de recursos, inviabilizando as grandes obras de infraestrutura exigidas, por exemplo, pelo esgotamento sanitário. Nos municípios menos populosos, a combinação desses dois fatores é mais comum.
No entanto, não podemos permanecer na superficialidade (e ingenuidade) e limitar tais questões a problemas técnicos e/ou financeiros. Se fosse esse o caso, o saneamento já teria sido universalizado, ou pelo menos estaríamos muito mais próximos dessa realidade. A dimensão política é a mais importante. Nesse momento de escolha dos futuros gestores municipais é imperativo pensar o acesso aos serviços de saneamento, avaliar as propostas dos candidatos, decidir e reivindicar qual agenda de governança queremos para os municípios do Norte e Noroeste Fluminense. Ressalta-se que a “dimensão política” colocada não se refere à política partidária, mas sim à necessidade de identificar os interesses públicos e privados envolvidos e os conflitos nem sempre visíveis a olho nu.
É urgente priorizar a parcela da população que não tem acesso aos serviços adequadamente. Falamos de acesso físico e financeiro, que promova qualidade de vida, desenvolvimento, privacidade e dignidade humana. Esse olhar vai além do ato de a concessionária responsável realizar uma ligação à rede de água e esgoto, para contabilização de dados estatísticos e abordagens midiáticas sobre uma suposta universalização que não necessariamente é percebida por toda a população.
As agendas políticas municipais precisam discutir e “fazer saneamento” para quem, até então, tem sido privado dos benefícios de ter água de abastecimento com qualidade e regularidade em suas torneiras e vias sem esgoto e lixo expostos. Através desse direcionamento, a desigualdade será reduzida, principalmente no que concerne à saúde pública, em virtude da contribuição do saneamento para a promoção do bem-estar social.
Em termos de prioridade, entramos no aspecto do direcionamento dos investimentos. O Norte Fluminense já se depara com anos de ações voltadas ao rentismo e ao clientelismo, tanto no setor quanto fora dele, como, por exemplo na economia petrolífera. A iniciativa privada, por exemplo, constantemente se apodera de recursos públicos (em termos financeiros ou em infraestrutura construída) para realizar suas atividades sem, necessariamente, gerar benefícios diretos à população; em outros casos, beneficia uma parcela em detrimento de outra.
Nesse sentido, a cobrança de tarifas é uma estratégia frutífera para o mercado ganhar em cima dessa “renta” (aluguel), principalmente em se tratando de um monopólio natural, como o é no caso dos serviços de água e esgotamento sanitário, em que os contratos possuem, em média, durabilidade de 30 anos. Isso quer dizer que a empresa responsável pelo serviço (quando esta não é municipal) possui o monopólio da água durante um longo período, pois não há competição entre as concessionárias e, caso não satisfaça a população, ela não tem a opção de trocar e migrar para outra (como ocorre com as operadoras de telefonia e internet, por exemplo).
Nós estamos nos referindo à garantia de um direito humano e à gestão de um bem comum (a água), que sofre um processo de mercantilização, isto é, ganha um valor comercial, mas que deveria ser garantido de forma gratuita e segura a toda a população. É preciso mudar essa realidade e reestruturar as prioridades, para superar as demandas das áreas periféricas dos espaços urbanos e o discurso da impossibilidade de atendimento devido à extensão da rede, e procurar medidas que solucionem o acesso em locais que, até então, vêm sendo intitulados como não rentáveis e irresolúveis.
Além disso, a governança municipal deve ter em seu escopo o diálogo com os prestadores dos serviços de saneamento, principalmente diante do emaranhado de relações institucionais, políticas e econômicas que existe em virtude dos múltiplos atores atuantes, ampliados pelas mudanças recentes ocorridas com o leilão da Cedae. O diálogo entre esses atores segue fragmentado, e a população, ainda mais afastada da participação pública e das decisões que a afetam diretamente.
Em Campos dos Goytacazes, foram várias tentativas, sem êxito, de pressionar a concessionária. Jornais locais e pesquisadores como Marcos Pedlowski, da Uenf, e Roberto Moraes, do IFF, vêm há tempo denunciando, em seus blogs pessoais, os lucros exorbitantes da empresa, realizados por meio de uma prática tarifária abusiva (uma das mais altas do Brasil). Seu poderio parece ser maior e para além da alçada do próprio poder público municipal, que é “incapaz” — por vontade política — de estabelecer uma comissão parlamentar de inquérito para rever o contrato de concessão, tentativa que se prorroga por alguns anos. Ao contrário, como anunciado recentemente em mídia local, a prefeitura, por meio de três aditivos, prorrogou o contrato da prestadora por mais 29 anos, sem licitação pública.
Outro ponto fundamental é olhar para o saneamento rural, que historicamente é abandonado pelo poder público, enquanto essa população encontra alternativas individuais (nem sempre adequadas) para lidar com efluentes. Os investimentos públicos, que deveriam ser destinados para garantir o (saneamento) básico, são direcionados para outras áreas — na maioria das vezes, financiando projetos de infraestrutura em áreas (urbanas) já valorizadas. A iniciativa privada, por outro lado, nem cogita chegar a esses espaços, justamente por não serem rentáveis.
Como lidar com o saneamento em zonas rurais, onde os domicílios são dispersos e é mais difícil implantar algum tipo de rede? É preciso que as prefeituras apresentem alternativas junto aos próprios moradores e aprimorem as medidas adotadas para suprir a ausência de serviços regulares, principalmente aquelas que combatam a insalubridade nas comunidades rurais.
Por fim, não podemos deixar de pontuar a ausência da garantia do acesso à água potável e banheiros em espaços públicos. Hoje, além da população em geral, que utiliza a rua em seus deslocamentos cotidianos, nos deparamos com uma parcela da população que possui outra relação com a rua. Por exemplo, os trabalhadores da limpeza pública, os camelôs, os entregadores e motoristas de aplicativos e a população em situação de rua dia e noite buscam formas de existência e sobrevivência nas calçadas e asfaltos da cidade.
Assim, enfatizamos que as novas gestões municipais precisam assumir o papel de representantes da população e contestar o atual cenário de priorização do interesse privado. É preciso e considerar o acesso à água tratada e ao esgotamento sanitário como direito humano, promovendo isonomia na prestação dos serviços e oportunizando espaços de participação e controle social. Água não é mercadoria, é um bem comum.
Não será possível falar em universalização do saneamento se todas essas questões permanecerem negligenciadas. A eleição é uma oportunidade muito importante para o(a) eleitor(a) procurar saber quem é quem no tabuleiro dos interesses envolvidos. E, entre uma eleição e outra, é preciso ocupar os espaços de decisão política para além das urnas eletrônicas.
Carlos Frederico Rangel de Almeida Ribeiro é doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador assistente do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles
Juliana Santos Alves de Souza é doutoranda em Ciências Ambientais e Conservação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora assistente do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles
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