Afinal, a cidade é para quem?
Júlio Pinheiro de Oliveira e Ana Paula Serpa Nogueira de Arruda - Atualizado em 22/05/2024 16:22
 
Rio de Janeiro (RJ), 29/02/2024
Rio de Janeiro (RJ), 29/02/2024 / Tânia Rêgo/Agência Brasil
O futuro das cidades brasileiras passa necessariamente pelo encontro com o seu passado, no qual diversas experiências de políticas urbanas contribuíram para o aprofundamento das nossas desigualdades. A Constituição democrática de 1988 trouxe uma seção exclusiva sobre a política urbana, que preconizava os futuros instrumentos de democratização dessa mesma política.
Os constituintes tinham a expectativa de que, ao democratizarmos os meios políticos, iríamos automaticamente democratizar a sociedade. No entanto, os anos que se seguiram à promulgação da Constituição demonstraram que a adoção de políticas neoliberais intensificou o caráter não democrático das nossas cidades, principalmente porque os custos das reformas econômicas recaíram sobre a população mais vulnerável. Além disso, mudanças no mundo do trabalho minaram as formas de cooperação da classe trabalhadora, enfraquecendo-a na luta por suas demandas coletivas.
Tomando a moradia como exemplo, experimentamos longo período de ausência de políticas habitacionais por parte dos governos em todas as esferas, deixando uma significativa parcela da população sem a garantia desse direito básico e sujeita ao descontrole dos aluguéis, a soluções habitacionais precárias ou mesmo à moradia na rua. A solução neoliberal para os problemas urbanos tem sido a transformação da cidade em um grande mercado, que garante o acesso a quem tem recursos e abandona à própria sorte quem não tem.
Em seu livro “Guerra dos Lugares” (2015 – Boitempo Editorial), a pesquisadora e arquiteta Raquel Rolnik narra as relações estabelecidas entre interesses dos setores hegemônicos do mercado financeiro, políticas públicas e a forma de produzir nossas cidades. A partir de sua experiência como relatora especial da ONU para assuntos relacionados à urbanização e à moradia, a pesquisadora expôs o dramático quadro existente em nossas cidades, onde a política urbana foi subjugada pelos interesses financistas. Raquel Rolnik fez importante sinalização: a cidade precisa ser produzida com ações democráticas substanciais. Assim, o grande desafio contemporâneo seria ampliar a participação dos segmentos sociais até então alijados dos processos decisórios das políticas urbanas, especialmente no campo da habitação. Esse tipo de participação enseja não apenas abrir espaço para a população decidir sobre suas políticas, mas sobretudo se contrapor à extrema pobreza, que cria amarras políticas passíveis de se traduzir na captura do voto.
Historicamente, passamos por grandes projetos de políticas habitacionais que, na maioria das vezes, acabaram se traduzindo na construção de grandes e afastados conjuntos habitacionais, que pouco ou nada contribuem para a democratização do espaço urbano. Inegavelmente os grandes projetos habitacionais — como o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), lançado em 2009 — produziram um volume substancial de moradias, mas esses programas tiveram como objetivo maior promover o setor de construção civil e atender a uma lógica lucrativa com a expansão das cidades em direção às periferias.
Após um hiato nos investimentos no campo da habitação, a Lei 14.620, de 2023, marcou o retorno do programa federal MCMV, com objetivos de ampliação da oferta e expectativas de melhorias e novas práticas de implementação, com uma melhor relação com o planejamento urbano. A meta do governo é a contratação de 2 milhões de moradias populares até 2026. Apontando para a adoção de novas práticas e aperfeiçoamento do programa, temos um comprometimento da atual gestão Lula com a busca de melhor localização dos empreendimentos considerando critérios de direito à cidade, acesso a equipamentos e a serviços públicos. Uma das críticas ao MCMV mais frequentes na literatura consiste exatamente na sua colaboração para a periferização das cidades, com a construção de conjuntos em áreas distantes dos centros urbanos, sem oferta de serviços públicos como saúde, educação, transporte, dentre outros.
Por sua vez, nos municípios do Norte Fluminense também temos vivenciado, nos últimos anos, uma desmobilização das políticas habitacionais de âmbito municipal. Após uma série de experiências realizadas especialmente em Campos e Macaé, vivenciamos a descontinuidade de projetos sociais importantes, que se dirigiam à população em maior estado de vulnerabilidade.
Diversos estudos acadêmicos dão conta desse mesmo caráter segregacionista das políticas habitacionais em Campos, pois houve excessiva preocupação em produzir moradias e praticamente nenhuma em conferir protagonismo aos próprios beneficiários com ações que pudessem adequar o modelo das políticas a suas necessidades. O programa habitacional municipal “Morar Feliz”, com sua meta rígida — e não alcançada — de 10 mil moradias, exemplifica esse padrão induzido de crescimento periférico, que impõe à população mais pobre espaços longínquos, pessimamente servidos por serviços públicos e com grandes dificuldades de criação de laços de solidariedade social. Assim, experimentamos em Campos, em sua devida escala, padrões de ocupação urbana que reiteram a lógica das grandes metrópoles, reeditando a histórica produção periférica do ambiente urbano. O potencial de produzir uma política local que tivesse maior efetividade na ampliação dos canais democráticos e na adequação do espaço de moradia foi simplesmente descartado pelo poder municipal a sua época.
É importante notar que a produção desse espaço urbano extremamente hierarquizado e segregado se intensificou justamente no período em que as rendas do petróleo tiveram um extraordinário crescimento com o pagamento dos royalties e das participações especiais. Contudo, nos últimos anos estamos vivenciando uma escassez de propostas para o enfrentamento da questão habitacional; os recursos das receitas petrolíferas diminuíram, e não há alternativas para a manutenção dessa política. Na atualidade não há sinalização do poder público para a construção de novas moradias e nem mesmo ações de suporte para os conjuntos já existentes.
Além da falta de vontade política, a extremada dependência nestes municípios frente às receitas petrolíferas também aponta a fragilidade desses programas habitacionais, o que explica, em grande parte, a descontinuidade. A bonança dos recursos dos royalties provocou a ausência de medidas que poderiam prevenir o atual momento. A falta de mecanismos institucionais, como um fundo municipal de habitação de interesse social e mesmo o Plano Local de Habitação Social, deve ser levada em conta se o poder local quiser dar continuidade aos programas habitacionais com vistas a realmente promover a democratização do ambiente urbano de Campos. Por sua vez, o retorno do programa federal MCMV poderia permitir a articulação das esferas municipais com o ente federal, rompendo com uma lógica de insulamento até então presente na área de habitação em Campos. Sem recursos municipais que permitam a continuidade de tais projetos, essas parcerias serão essenciais se de fato o acesso à moradia for uma prioridade para o poder local, ainda que isto gere o rateio de seu capital eleitoral.
O vácuo criado pelo completo desmantelamento das ações junto à moradia (tanto no nível municipal, quanto no federal) possibilitou as condições para a intensificação dessa problemática, que no caso de Campos culminou com a ocupação das casas populares do Conjunto Novo Horizonte. Em que pesem todas as críticas possíveis a essa ação e aos seus desdobramentos — pois famílias pobres ocuparam moradias que seriam entregues a outras famílias pobres —, esse emblemático caso pode nos trazer pistas para finalmente estabelecermos um caminho mais democrático para a questão da moradia em Campos. O ineditismo dessa ocupação provocou a mobilização de um significativo conjunto de atores da sociedade civil buscando mediar e solucionar esta questão. Pesquisadores, professores e alunos de instituições como a Uenf, a UFF e o IFF, em conjunto com Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), movimentos sociais e associações de moradores, vêm ampliando o debate acerca da necessidade de promover uma política habitacional democrática e efetiva. Portanto, cabe aos que disputarão as eleições deste ano ouvirem justamente aqueles que eles se propõem a servir: a população.

Júlio Pinheiro de Oliveira é doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor do Instituto Federal Fluminense (IFF) e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.

Ana Paula Serpa Nogueira de Arruda é doutora em Sociologia Política pela Uenf, com estágio de doutorado (Capes) no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (Igot/UL); professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Regional e Gestão de Cidades (PGPRGC) da Universidade Cândido Mendes (Ucam); e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.

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