O Bar que resiste: a última cena de Bicho André
Edmundo Siqueira 02/10/2024 21:53 - Atualizado em 02/10/2024 21:58


Se seu bar fosse um filme, André seria algo como um Tarantino. Se fosse um livro, um Hemingway. Tem criadores que são assim: as suas criaturas carregam sabores especiais por serem deles. No caso de André, como ele dedicou sua vida a uma de suas criaturas, ela levou seu nome: “Bar Bicho André”.

André tinha mais de um metro e oitenta, assim como Tarantino e Hemingway. Era difícil passar despercebido. Era daqueles tipos que podiam transmitir, pelo rosto, mesmo com os olhos encobertos pelos óculos Ray-Ban, sarcasmo e raiva na mesma intensidade de satisfação e alegria. O sonho do bicho era criar o melhor bar de Campos; talvez não tenha conseguido, mas conseguiu algo ainda maior.

Quantos na cidade entravam no Bicho André sedentos para viver os exageros dionisíacos daquele oásis do rock campista. Iam para matar a sede em um bar de estética noir, e por lá tentavam extravasar o que era preciso exorcizar. E encontravam companheiros e companheiras igualmente sedentos, em uma taberna que aceitava que bandas locais experimentassem sua arte, nua e crua. Era como atravessar um portal em uma cidade cheia de tradicionalismos bobocas. E o guardião era André.

Entre pôsteres de bandas e copos trincados, seu bar era um santuário onde a vida se propunha a acontecer com mais intensidade. O guardião André por vezes mantinha seu templo com a dualidade com o profano, onde o sagrado não era algo religioso, mas sim a humanidade. Uma trincheira roqueira onde guitarras distorcidas ecoavam como orações, e cervejas eram servidas como sacramento.

André talvez tenha entendido que o Bicho André viveria tempos difíceis se não fosse encarado como um comércio. Se não se rendesse às facilidades do pop, se não abrisse sua casa para espetáculos popularescos cheios de pagantes sem alma.
Facebook - Wellington Cordeiro
Talvez já tivesse entendido isso antes mesmo de abrir as portas do bar pela primeira vez. Mas decidiu não se render. Fez de sua criatura a extensão de casa. Queria produzir memória, pertencimento e identidade. Acolhia clientes como amigos, queria que eles tivessem no Bicho André vivências memoráveis ao som de rock e blues. Conseguiu.

O guardião e criador do Bar Bicho André se despediu na segunda, último dia de setembro do ano de 2024. Dizem que antes de morrer a vida passa diante de nossos olhos. Crendices de quem quer acreditar que há algo de especial na morte.
André acreditava na vida, embora tenha se entregado a pulsões mórbidas algumas vezes. Mas, vai que há mesmo algo de especial na morte, e que tenhamos um tempo por aqui, em plano terrestre, para fazer aquilo que estamos destinados. E que alguns conseguem e outros não, e no fim um filme realmente se passa para sermos espectadores de nós mesmos. Vai que.

Facebook - Aluysio Abreu Barbosa
Nesse caso, André deve ter se colocado de frente para uma das mesas do Bicho, em uma cadeira alta de madeira, ao lado de uma parede de azulejos estilizados e de costas para um painel ripado com fotos de clientes e de presentes que recebeu de um em especial, que via como filho.
De lá viu sua vida passar, ouvindo rock em volume alto. Viu seus amores, parceiros, amigos e inimigos de uma vida intensa. Entre um gole de cerveja e outro, curtia o que via, chorava, ria, e tentava dirigir as cenas novamente. Mas o tempo de Tarantino havia passado.

Lá pelas tantas, já quase pronto para apagar a luz do bar e fechar a grade, uma garotinha se aproximou e disse que o amava; e o perdoava. Disse que se sentia jovem, como ele sempre foi, e que queria se manter assim, como ele. Que havia herdado dele quase tudo. Era sua única filha, Carol. André chorou, beijou-lhe a testa, e disse que sempre estaria com ela. Ela, disse apenas que sabia disso.

Aquela era a última apresentação do Bicho André, e as luzes se apagaram. Os créditos passaram todos na tela e o livro teve seu ponto final. Mas André ensinou durante toda sua vida, e deixou como ensinamento: o show tem que continuar.

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