Edmundo Siqueira
11/01/2022 20:44 - Atualizado em 11/01/2022 20:53
A relação de Campos dos Goytacazes com seus recursos hídricos não é apenas embrionária, mas é essencial para entender as relações econômicas e sociais contemporâneas. A ocupação do solo, desde os primórdios da colonização, se deu por essa relação. Goitacá, que é a designação dos indígenas que aqui habitavam, significa "gente que sabe nadar” — em tupi, aba ("homem"), ytá ("nadar") e quaa ("saber"). Campos está em uma região formada por um ecossistema particular, de abundância de rios, lagoas e pântanos.
Lidar com tanta água sempre exigiu muito esforço e recursos dos que aqui vivem e produzem. Historicamente, adaptações permanentes foram feitas para a conquista dos rios e a criação de novas rotas para escoamento de água e da produção. Entre as intervenções mais importantes estão barragens, os diques e os canais, que foram construídos a partir do início do século XX, principalmente.
O Brasil possui os maiores reservatórios de água doce do planeta, que estão divididos em bacias hidrográficas. Essas bacias são formadas por um rio principal, seus afluentes e subafluentes. A bacia do Paraíba do Sul é a maior e mais importante do sudeste brasileiro, usada para abastecer um contingente de mais de 15 milhões de pessoas. Segundo dados da ANA – Agência Nacional de Águas, a bacia possui 62.074 km² de área e abrange 184 municípios, em três estados, sendo 39 em São Paulo, 88 em Minas Gerais e 57 no Rio de Janeiro.
O rio Paraíba do Sul nasce em São Paulo, com o resultado da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga. Essencial para todos os municípios de sua bacia hidrográfica, para muitos fins como abastecimento, diluição de esgotos, irrigação e geração de energia hidrelétrica. É fonte de riqueza, mas também origem de calamidades.
As enchentes
O norte fluminense sofre de tempos em tempos com as consequências de enchentes desastrosas. No conceito acadêmico, 'desastre' pode ser definido como “uma séria ruptura do funcionamento, da sociedade que causa perdas humanas, materiais ou ambientais generalizadas, que excedem a habilidade da sociedade afetada de recuperar-se usando somente seus próprios recursos”. É uma definição que se adequa perfeitamente às cheias enfrentadas pelos fluminenses.
Historicamente, os desastres (eventos que podem ser assim considerados) em Campos aconteceram nos seguintes anos, nos meses de janeiro e fevereiro: 1943, 1966, 1979, 1985,1997, 2007 e 2008 (a única exceção que teve início em dezembro).
1966
A enchente de 2007 foi um evento desastroso, sem a menor sombra de dúvida. Porém, no imaginário popular de Campos, principalmente entre os moradores mais antigos, a cheia de 1966 foi a maior de todos os tempos. Entre uma divergência geográfica e outra, e pela fragilidade de dados apurados em 66 comparativamente com 2007, é difícil medir com exatidão a maior cheia da série histórica. Mas vamos a alguns fatos:
Em termos de magnitude, quando considerados os impactos das entradas pluviométricas, das chuvas, e das respostas fluviais, do rio Paraíba e seus afluentes, o evento de 1966 foi o maior, segundo os especialistas. À época já haviam sido construídos alguns dos diques de contenção (o dique da margem esquerda foi feito em 1969), mas eles eram muito menores em altura do que são hoje, contendo menos o rio e produzindo um significativo aumento do espraiamento, ou o espalhamento, das águas.
Em 1966, o rio Paraíba do Sul saiu do leito em 30 km no sentido da margem esquerda. A inundação em sentido contrário ao mar estendeu-se por 120 km, atingindo os municípios de São Fidélis e Itaocara, na confluência do Paraíba com o rio Pomba. Segundo a imprensa da época, as atividades ligadas à agricultura e à pecuária foram afetadas em 90%, com reflexos nas usinas de açúcar, com as plantações de cana perdidas e escassez de mão-de-obra. Campos tinha, na década de 1960, mais de 54% de seus habitantes na área rural. O jornal 'O Globo' informava, no final de janeiro, que haviam 3.815 desabrigados em Campos, com estimativa de ao menos 250 mortos pelas inundações.
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2007
Mesmo com medidas de proteção melhores, e de controle hídrico mais eficiente, 2007 foi ainda mais danoso que 1966, em termos de prejuízos econômicos e ambientais.
Naquele ano, em 05/01, o rio Paraíba do Sul transbordou, atingindo a marca de 11,20 metros, bastante superior a cota crítica de 10,40. Das três pontes que faziam a ligação entre as margens direita e esquerda em Campos, apenas a General Dutra ficou transitável. Mas não durou muito. Um dia depois não suportou a correnteza e dois pilares afundaram. O rio alcançava os mais altos valores de cota e vazão já registrados desde o desastre de 1966.
Se não bastasse, dois diques se romperam. Na margem direita, em dois pontos: Alto do Viana, em São João da Barra, alagando cerca de 400 hectares de pasto e fruticultura, e na altura do bairro Pecuária, em Campos. No dia 14 do mesmo mês, foi a vez da margem esquerda do Paraíba. Próximo à localidade de Abadia, uma cratera foi aberta com aproximadamente 100 metros de largura, inundando todo entorno, constituído em sua maior parte por propriedades rurais.
Os prejuízos foram estimados, em valores da época, em 100 milhões. Atualizando a cifra, 316 milhões de reais foram contabilizados como perdas pela enchente de 2007. Apenas na agricultura. Mais de 50% da safra de cana-de-açúcar perdida. As empresas de Cerâmica do município não puderam escoar sua produção para o Espírito Santo, seu principal mercado. A economia urbana totalmente afetada pelo caos no transporte, nos danos causados pelo alagamento das ruas, com a interdição das pontes, o desabastecimento de água potável, e os problemas na coleta de lixo.
Na área residencial, um estudo da Defesa Civil de Campos dava a conta de dez mil imóveis afetados, com estruturas comprometidas pelas inundações. Foram contabilizadas 48.068 pessoas desalojadas e 100.145 afetadas pelas cheias. O número de mortos não foi informado pelas autoridades da época.
A Folha e os jornais locais noticiavam o fato de que os canais da Baixada Campista encontravam-se completamente obstruídos por sedimentos, impedindo o correto escoamento das águas.
Friburgo, Teresópolis e Petrópolis sofreram ainda mais alguns anos depois. A região serrana sofreu a pior catástrofe ambiental do Estado, com prejuízos de toda ordem.
Os recursos disponíveis para controle e mitigação de danos
Os sistemas de proteção — ou pelo menos de controle de chegada das águas — mais eficientes e usuais são as barragens. Porém possuem alto custo financeiro e ambiental. Na bacia do rio Paraíba existem cinco barragens, ao longo do curso principal: Paraibuna e Santa Branca em São Paulo, e Funil, Santa Cecília e Ilha dos Pombos no Rio. Ao sistema, adiciona-se Centrais Hidrelétricas (PCHs) distribuídas ao longo dos afluentes.
A região do baixo rio Paraíba do Sul conta ainda com 389 canais entre primários e secundários, totalizando 1.293 km de extensão. Os canais foram construídos em Campos para possibilitar a drenagem das áreas agricultáveis e em uma perspectiva higienista, onde as lideranças de Campos encomendaram ao engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, um plano de construção.
Até de 1965, a baixada Campista contava com uma rede de 600 km de canais. Depois das intervenções do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), Campos teve mais que o dobro. É essa rede que se mantém até hoje. Verifica-se que o processo de drenagem se intensificou após a segunda metade da década de 1960, coincidindo com o período pós-desastre de 1966.
Fim do DNOS
Com a edição da Medida Provisória nº 151, de 15 de março de 1990, no governo Fernando Collor, foi determinado o fim do órgão que cuidava dessa estrutura de canais. Um dos maiores sistemas do Brasil, que era administrado pelo DNOS ficou abandonado, apenas com ações pontuais das prefeituras e de órgãos como INEA, e Comitê de Bacias e CEIVAP a partir de 2009.
O sistema ficou caótico. Sem manutenção adequada, a drenagem que os canais artificiais e comportas manobráveis pela ação humana deveriam promover fica fragilizado. Com os eventos de 2007 e 2008 recursos públicos de grande porte foram aplicados para conter os danos. Mas falta muito para Campos e região ter a estrutura necessária para impedir grandes cheias e conter os danos causados.