Lidar com tanta água sempre exigiu muito esforço e recursos dos que aqui vivem e produzem. Os indígenas que habitavam esse solo, antecedendo os colonizadores, também dependiam da relação com as águas para sobreviver. O nome de uma das principais tribos da região — os Goitacá — significa em Tupi Guarani “homem que sabe nadar” ou “homem corredor”.
A cidade de Campos é cortada pelo rio Paraíba do Sul, “dono” da maior e mais importante bacia do sudeste brasileiro. Segundo dados da ANA – Agência Nacional de Águas, a bacia possui 62.074 km² de área e abrange 184 municípios, em três estados, sendo 39 em São Paulo, 88 em Minas Gerais e 57 no Rio de Janeiro, abastecendo um contingente de mais de 15 milhões de pessoas.
O rompimento da "última barreira”
O rio Paraíba do Sul nasce no estado de São Paulo, sendo resultado da confluência de outros dois rios: Paraibuna e Paraitinga. O “velho Paraíba” é essencial para todos os municípios de sua bacia hidrográfica, atuando não apenas no abastecimento, mas também na diluição de esgotos, irrigação e geração de energia. É fonte de riqueza, mas também origem de calamidades.
Além do Paraíba, a planície alagadiça é formada por enormes lagoas e pântanos. Apenas a Lagoa Feia, localizada na divisa dos municípios de Campos e Quissamã, possui mais de 138 km de perímetro.
Na última segunda-feira (19), o histórico dique de contenção da avenida XV de Novembro (conhecida como Beira-Rio) rompeu. O dique, construído nos anos 1970, deixou uma cratera no centro da cidade e assustou a população, principalmente um motorista que passava na hora do rompimento e despencou junto com a estrutura — apesar do susto, teve apenas ferimentos leves.
“O dique de contenção, na Avenida XV de Novembro representa uma contingência contra as cheias do Rio Paraíba do Sul e no momento encontra-se seriamente avariado e em processo de colapso estrutural, sendo este a última barreira de preservação do município frente à inundação das águas do rio, haja visto que o centro da cidade se encontra abaixo do nível da calha média do rio”.
Os desastres
Historicamente, os principais desastres relacionados às cheias do rio Paraíba em Campos, aconteceram no início dos anos de 1943, 1966, 1979, 1985, 1997, 2007, 2008 e 2022.
Em 2007, nível do rio Paraíba chegou a assustadores 11,20 metros, ultrapassando em muito a cota de transbordo, que é de 10,40. Mas, no imaginário popular dos campistas, a cheia de 1966 foi a maior de todos os tempos. Entre uma divergência e outra, e pela fragilidade de dados apurados em 66, especialistas dizem que é difícil afirmar com exatidão qual, de fato, foi a maior cheia da série histórica.
Em termos de magnitude, quando considerados os impactos das entradas pluviométricas (das chuvas), e das respostas fluviais (do Paraíba e seus afluentes), o evento de 1966 foi catastrófico. À época, já haviam sido construídos alguns diques de contenção (o dique da margem esquerda do rio foi feito em 1969), mas eles eram muito menores em altura do que são hoje, produzindo um significativo aumento do espraiamento (ou espalhamento) das águas.
Em janeiro de 1966 Campos tinha pouco mais de 250 mil habitantes, com 54% na área rural. A “grande cheia” registrou 3.815 desabrigados, com estimativa de ao menos 250 mortos pelas inundações.
Rompimento de diques
Depois do desastre dos anos 1960, o município melhorou as medidas de proteção e prevenção, e produziu um controle hídrico mais eficiente. Porém, a falta de limpeza dos canais e de manutenção nas estruturas de defesa, contribuíram para que Campos assistisse em 2007 um evento ainda mais danoso que 1966 em termos de prejuízos econômicos e ambientais.
Naquele ano, o rio Paraíba do Sul transbordou, e apenas uma das três pontes que existiam (a General Dutra), e que faziam a ligação entre as margens direita, ficou de pé. Mas não durou muito. Em 6 de janeiro de 2007, dois pilares da última ponte transitável ficaram seriamente comprometidos.
Os prejuízos foram estimados, em valores corrigidos, em mais de 332 milhões de reais — apenas na agricultura. A economia urbana foi totalmente afetada pelo caos no transporte, com o desabastecimento de água potável e problemas na coleta de lixo.
Naquele ano foram contabilizados mais de 10 mil imóveis inundados, 48.068 pessoas desalojadas e outras 100.145 afetadas de alguma forma pelas cheias. O número de mortos não foi informado pelas autoridades da época.
As cheias do ano seguinte, 2008, foram consideradas como consequências dos diques rompidos. Em janeiro de 2022, o rio Paraíba teve a cota de transbordo novamente ultrapassada, e uma nova enchente acometia Campos dos Goytacazes.
Diques e barragens suficientes, mas historicamente mal administrados
Segundo o Comitê do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, na bacia do rio Paraíba existem cinco barragens, ao longo do curso principal: Paraibuna e Santa Branca em São Paulo, e Funil, Santa Cecília e Ilha dos Pombos, no Rio de Janeiro. Ao sistema, adiciona-se Centrais Hidrelétricas (PCHs), que são distribuídas ao longo dos afluentes.
A região conta ainda com 389 canais entre primários e secundários, totalizando 1.293 km de extensão. Em Campos, os canais foram construídos, pincipalmente por intervenções do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), para possibilitar a drenagem das áreas agricultáveis e em uma perspectiva higienista, elaborada pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito.
É essa rede que se mantém até hoje. O processo de drenagem se intensificou após a segunda metade da década de 1960, coincidindo com o período pós desastre de 1966.
Sem manutenção adequada, a drenagem que os canais artificiais deveriam promover fica insuficiente. E o sistema ficou caótico. Com os eventos de 2007 e 2008, recursos públicos de grande porte foram aplicados para conter os danos, mas não foram eficientes para conter novos desastres.
O rompimento do dique da XV de Novembro evidencia que falta muito para Campos e região possuírem a estrutura necessária para impedir grandes cheias, e principalmente conter os danos causados. Enquanto o necessário não for feito, a planície alagadiça continuará mostrando que os desastres são inevitáveis.