Lembrai-vos da liturgia do cargo
Edmundo Siqueira 02/11/2023 12:21 - Atualizado em 02/11/2023 12:28




Desde que a humanidade decidiu abrir mão de parte de sua autonomia e liberdade em nome de um pacto social — uma convivência coletiva pautada em normas e com a presença de um organismo chamado “Estado”, atuando não apenas nos ordenamentos mas com poder real sobre a vida das pessoas —, a preocupação com os preceitos éticos dessas relações foi uma constante.

O axioma acima, caro leitor, não é mero recurso retórico. Sócrates já pensava sobre a ética, já formulava teorias sobre como as pessoas agiam e reagiam diante do “bem” e do “mal”. Isso 300 anos antes de Cristo (ou antes da Era Comum, termo mais apropriado em tempos de guerra no Oriente Médio). Seu pupilo, Platão, e o aluno dele, Aristóteles, continuaram a refletir sobre ética e vida social.

“Conhece-te a ti mesmo”, dizia Sócrates, fazendo alusão direta à ideia de que quando o indivíduo conhece quem ele é, e onde está no mundo, age eticamente. Platão trouxe a discussão para as cidades — as pólis. Para ele, alguém só seria realmente bom sendo efetivamente um “bom cidadão” com a “subordinação do indivíduo à comunidade”, e na necessidade de um Estado. Já Aristóteles, entendia que as virtudes do indivíduo estavam relacionadas com sua prática, e essa deveria refletir em cidadania, participação, e reforçava a inseparabilidade entre ética e política.

Sim, há um abismo temporal e comportamental dos tempos do trio de filósofos da antiguidade. Mas as mesmas questões que refletiam continuam a produzir basicamente os mesmos efeitos, hoje. Quando discutimos políticas públicas, impostos, corrupção ou escolhemos em quem votar de dois em dois anos, estamos analisando, conscientes ou não, através de lentes éticas e morais.

Não se trata de moralismo. O julgamento ético que se faz de uma pessoa pública, ou de um político, abrange diversas questões relacionadas à postura, ao cuidado com o erário, ao passado dessa pessoa, e até seu linguajar e vestimenta. E essencialmente o modo que se relaciona com os seus, com inimigos e com desconhecidos.

O discurso do político importa, não apenas nas tribunas, mas o que e como alguém investido em um cargo público fala, influencia — para o bem e para o mal, no conceito socrático ou contemporâneo. São escolhas do ser político, mas que não se pode esquecer que também são seres sociais.

Ser agressivo em um discurso público agride o ouvinte, mas ofende ainda um princípio básico do fazer político ético: a preocupação com a comunicação e com o uso da língua para construir uma sociedade melhor, e principalmente permitir que mais pessoas possam participar e se sentirem representadas.

A construção da democracia parte de uma ideia abstrata, mas se consolida quando governo e sociedade têm voz e meios de fazer com que seus problemas sejam resolvidos. Nas cidades, é preciso criar as condições para que as pessoas se articulem num nível local de forma consistente, que possam ser ouvidos e sentir-se representados. A agressividade na comunicação e na construção dos discursos públicos afasta; não inclui.
Portanto, é uma postura antidemocrática.

Por tudo isso existe um termo que faz alusão aos rituais católicos que no meio político é conhecido por “liturgia do cargo”. No Brasil, a expressão foi popularizada pelo ex-presidente José Sarney que vinculou a responsabilidade de ocupar um cargo público — no seu caso de presidente da República — perante a população. Das palavras ditas, ao comportamento pessoal, tudo tem seu peso político, sua importância na construção da democracia.

Quando o político age agressivamente, com denuncismo ou tentando criar animosidade contra seus adversários, ele afeta sua moralidade individual, e assim destrói laços vitais e necessários que são visíveis ao povo.
Por outro lado, pode atrair seguidores que se identificam no conflito bélico comunicativo promovido pelo político, principalmente em tempos de redes sociais, mas isso não se sustenta. Primeiro pelo próprio esgotamento do conflito, depois pela percepção de quem o segue que sofreria os mesmos ataques caso desagradasse o político.

O julgamento eleitoral não é apenas relacionado aos resultados que um governante entrega, e embora haja muito de passionalidade nas eleições, a razão também está presente. Quem decide participar do escrutínio público de forma antiética e antidemocrática, utilizando-se de comunicação violenta, atrai o mesmo do eleitorado.

E vale lembrar, mesmo os pensadores que olharam para ética e a relativizaram, como Maquiavel, não dispensaram a obediência aos rituais formais de quem ocupa cargo público. Sob pena de atrair aliados e eleitores que dispensem qualquer liturgia. “O primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta”, ensinou Maquiavel.
 

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