Ele era um velho que remava sozinho em sua canoa, na baixada. Havia oitenta e quatro anos que fazia esse percurso pela beira do rio cheio. Naquele janeiro, ele estranhava a velocidade que o rio subia. “De manhãzinha ainda estava no curral; já chegou à soleira da cozinha”. O velho encostou a canoa na vegetação mais densa, que começou a despontar onde a cheia terminava. O barulho de madeira rangendo se potencializava nas águas já calmas ali da beira. Desceu com as calças dobradas no joelho, e o barulho de madeira cedia lugar à cadência alta da corrente sendo arrastada pela proa.
Com sua embarcação já ancorada, o velho parou um pouco e olhou para aquele mar amarelo-barro, com algumas árvores de fora. Em sua pequena propriedade o rio sempre crescia nessa época. Aquele ano estava um pouco diferente, mas ele já havia visto pior. “Em 66”. Lembrou-se. “Era tudo água”.
A cheia do rio causava-lhe preocupação. Já não estava mais com a disposição de antes, tudo era mais difícil. Mas aquela ronda no rio cheio lhe trazia um ar de nostalgia. Ademais, tinham sido os últimos cinco anos marcados pelo oposto: secas intermináveis. O amarelão que coloria todo pasto o deixava feliz, apesar de tudo.
Com cheia ou sem, retirar da terra seu sustento era cada vez mais complexo. Não tinha os documentos do pedaço que seu pai lhe deixou, há mais de sessenta anos. Não sabia onde buscar ajuda técnica, e crédito no banco era algo quase impossível. Repetia o que aprendeu, apenas. Até a canoa era a mesma que seu pai usava nas cheias. Não era uma família de pescadores. Mal sabiam lidar com redes, linhas e anzóis. O rio lhes servia para dar de beber as criações e alimentar os lençóis subterrâneos. Portanto, a canoa era utilizada apenas quando o rio enchia, principalmente para ir às pastagens dos altos.
Depois de vistoriar os poucos boi que sobraram da venda feita às pressas quando percebeu que o rio subiria, o velho voltou à canoa. Dessa vez a alegria nostálgica tinha passado. Por mais acostumado que estivesse com aquela situação o velho se ressentia de não ter se programado melhor, de ter vendido o que precisava em melhor época, e de não ter se preparado financeiramente para o prejuízo que inevitavelmente ia sofrer com aquela situação. Puxou a corrente de uma só vez, passou com dificuldade uma das pernas pela borda da canoa, sentou-se de costas para o rio, e empurrou a embarcação para longe da beira, com a cara fechada.
Enquanto remava de volta para casa, percebeu que o rio apenas fazia o que ele nasceu para fazer. E queria ocupar o lugar que era dele, mesmo que sazonalmente. "Ora — pensou, olhando para si mesmo — "quem decidiu plantar ou morar onde se sabe que o rio enche que é culpado".
Já em casa, depois do banho tomado, o velho sentou-se na sala. O leite esfumaçava na xícara sobre a mesinha, ao lado da cadeira. Ligou a televisão. Passavam as notícias. O velho ouvia atentamente o repórter falar, ensopado de chuva, com uma capa amarela e ao fundo uma rua alagada. A âncora do jornal anunciava uma entrevista com um especialista em enchentes, que seria em instantes. O velho acompanhava com atenção enquanto sorvia o leite quente.
— Uma gestão de riscos bem feita e com a previsibilidade que é possível trabalhar, conseguimos mitigar bastante as consequências. Com limpeza de canais, barragens e orientação técnica, podemos controlar bastante as causas — afirmava, com segurança, o especialista da TV.
O velho logo desligou o aparelho depois da fala do especialista. Precisava ir dormir mais cedo; no outro dia precisaria remar novamente. No caminho do quarto, com um copo de água nas mãos, pensou: “a culpa não é de ninguém. É de todos”.