— Mas já, meu bem? — perguntou a esposa ao acordar, ainda deitada, se espreguiçando.
— Sim…amanhã é aquela reunião lá no Rio, não lembra?
— Claro que me lembro — uma pausa para um bocejo e continuou — mas não sabia que iria tão cedo.
— Tem esses bloqueios nas estradas e hoje ainda começa a Copa do Mundo.
Eram recém casados. Se conheceram na semifinal da Copa de 2014. Já havia uma tensão entre os dois via Facebook, e prometeram que iriam se beijar, naquele que seria o primeiro encontro, caso a Alemanha fizesse um gol. Deram 7 beijos naquele início de noite.
— Esse povo ainda está bloqueando as rodovias? Não é possível — disse ela, já sentada na cama, com cara de sono e cabelos desgrenhados, olhando para o horizonte, como se falasse para ela mesma.
— Pois é — o barulho do zíper da mala interrompeu a conversa matutina.
Quando ela finalmente se levantou, o café já cheirava na cozinha e as torradas que gostava já estavam no pires. Não conseguia ver o rosto do marido, estava escondido pelo jornal — hábito que ele cultivava aos domingos —, mas mesmo assim resolveu continuar a conversa do quarto.
— Terceira Copa do Mundo nossa, hein meu bem?
— Sabia que estava pensando nisso? — dobrou o impresso em um dos lados e sorriu para a esposa. — Mas...como em 2014 as coisas eram diferentes. Estávamos usando a camisa canarinho sem problema algum.
— Mas sabe de uma coisa? Acho que não deveríamos deixar de usar nessa Copa. A camisa é do Brasil, não é do bolsonarismo.
— Concordo contigo, mas tem um problema aí — sorveu um pouco do café e continuou — a camisa da seleção, a amarela pelo menos, foi usada como uniforme. Não é uma simples questão política, passou a ser uma identidade. Foi além. Lembra daquela briga com seu primo?
A briga a que se refere aconteceu em um churrasco de família. O primeiro turno das eleições havia acabado há pouco, os ânimos estavam acirrados, e as pesquisas eleitorais teriam sido o motivo da discórdia.
Depois daquela discussão, no caminho de casa, o casal tentava entender o porquê de pessoas que antes se davam bem não conseguissem mais chegar a um entendimento pacífico. Ponderavam sobre os movimentos fascistas na história, e chegaram justamente no ponto do uniforme. Lembraram que o ditador italiano Benito Mussolini iniciou essa “moda” de usar camisas de uma cor específica como um uniforme de um movimento político. O duce italiano aderiu à cor preta, com inspiração nos Arditi, uma tropa de assalto de elite da Primeira Guerra Mundial. Queria gerar medo nas pessoas.
— Eu sei, eu sei. Tem alguns intolerantes por aí, ainda. Mas se não usarmos a camisa da seleção eles então ganharam, não concorda? — ponderou a esposa.
— Você pode estar certa. Mas não consigo.
— Olha só, vamos tentar. A Copa começa hoje, como você mesmo lembrou mais cedo. Quem sabe não será ela a pacificar o país, pelo menos um pouco?
— Acho que você está muito otimista, meu bem. Mas sim, podemos tentar sim.
— Então você vai hoje com aquela camisa da seleção que a gente comprou na última Copa, quando comemoramos quatro anos de namoro.
— Sério, hoje? Mas assim, tão rápido? Sei não…
— Vamos tentar! Precisamos criar um país melhor, daqui a pouco teremos um filho.
— Tá bom, mas você sabe que a amarelinha ainda significa o uniforme de um movimento ultranacionalista, anticomunista em um tempo que o comunismo nem existe mais, ultraconservador e tradicionalista católico, não sabe?
— É evangélico, meu bem.
— Que seja. Você sabe né?
— Sei. Mas precisamos tentar fazer um país menos odioso.
— Tá bom. Mas depois não diga que não te avisei.
Um dos traços do fascismo é gerar temor e cultuar, ou banalizar, a morte. Faz grande sucesso em setores da população que consideram que tudo deve se resolver na base da pancada ou da bala.
No Brasil atual, a polarização foi agravada a níveis insustentáveis e atos violentos aconteceram com motivações políticas, provocados por ambos os lados. Os “camisas amarelas” são, em geral, armamentistas e com fortes traços de autoritarismo, o que causa um medo maior.
Além dos “camisas negras” de Mussolini, os “camisas pardas” de Hitler também adotaram a cor da vestimenta como uniforme. Existiram grupos fascistas nos EUA, esses usavam camisas prateadas. No México, foram camisas douradas, e a versão brasileira, no Integralismo — movimento fascista dos anos 1930 —, usavam camisas verdes, com direito a braçadeira com um círculo branco no meio, substituindo a suástica nazista pela letra grega sigma.
— Pronto. Tô indo — algum tempo depois do café, ele apareceu na sala, na frente do sofá onde estava a esposa, mochila em um dos ombros, camisa da seleção, uma bermuda cáqui e sapatênis.
— Mas precisava do uniforme todo? — não resistiu. Gargalhou.
— Agora você ri, né!
— Desculpe! De verdade, me desculpe. Tá ótimo. Orgulho de você, meu bem. Nós vamos conseguir um país melhor.
Beijaram-se em despedida, e ele pegou estrada. Estaria no Rio antes do primeiro jogo da Copa do Mundo de 2022: Catar e Equador.
Chegando na capital, resolveu assistir ao jogo em um bar. Algumas cervejas depois, fim de jogo. O Equador vence de 2 a 0. Ao seu lado, duas mulheres conversavam. Dava para ouvir todo o assunto. Criticavam arduamente o fato do Catar ser de direita e o Equador também.
— Melhor a gente parar, tem um bolsominion aqui — disse uma das mulheres.
— Não sou bolsonarista. Só estou com a camisa da seleção.
— Já começou a Copa, né?
— Pois é. Vamos tentar recuperar nossos símbolos nacionais, pelo menos na Copa.
— Ah, então você realmente não é bolsonarista. Falando assim, não pode ser. Fico tranquila.
— Não, não sou.
— Que bom! Então votou no Lula, como a gente!
— Sim e não.
— Como assim?
— No segundo turno, sim. No primeiro, votei na Simone Tebet.
Alguns segundos de silêncio, e a duas mulheres gritaram, quase sincronizadas:
— Fascista!