A democracia brasileira está por conta própria
Edmundo Siqueira 09/10/2022 22:15 - Atualizado em 09/10/2022 22:17
Foto: Antonioni Cassara


Vivemos — ainda — no Brasil o que convencionou-se chamar de “Nova República”: forma de governo e de organização social que começou no pós-ditadura, principalmente depois da Constituição de 1988. Mas esse ciclo de nossa história parece estar findando.

Depois de 21 anos de uma ditadura militar sangrenta, o país foi às ruas exigindo eleições presidenciais, em uma campanha articulada por líderes políticos aos quais interessava que o país se redemocratizasse. O movimento das ‘Diretas Já’ foi o embrião da Nova República. A partir dali, personagens como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães e José Sarney negociaram com o exército a volta de um governo civil — essencialmente a volta da democracia.

Conseguiram. Promulgou-se uma Constituição, ato contínuo 22 candidaturas para presidente, e como não acontecia desde os anos 1960, foi eleito um representante civil para governar o Brasil. Entre os 22 estavam Fernando Collor, Luís Inácio Lula da Silva, Mário Covas, Leonel Brizola, Afif Domingos, Enéas Carneiro, e Orestes Quércia. Collor venceu.

Mais que eleições diretas, estava restabelecido no Brasil a partir dali um ideal democrático e as bases para isso em uma democracia que, mesmo jovem, havia passado por traumas e atropelos traumáticos. Os anos de chumbo terminavam e a Constituição foi criada em fortes preceitos igualitários e de justiça social.

Está lá, logo nos primeiros artigos da Carta: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Câmara, Senado e o bolsonarismo
Presidente da Câmara, Arthur Lira, em evento de campanha de Bolsonaro. Vestindo a camisa do bolsonarismo, literalmente.
Presidente da Câmara, Arthur Lira, em evento de campanha de Bolsonaro. Vestindo a camisa do bolsonarismo, literalmente. / Reprodução/Folha S. Paulo
O primeiro presidente da Nova República saiu por um processo de impeachment. Collor foi eleito com um discurso de “caçador de marajás” e antisistema, e quando impichado deu lugar a dois partidos que pautaram a vida política do país nos anos seguintes. PT e PSDB disputavam a preferência do eleitorado brasileiro em duas visões de mundo que nasceram do mesmo lugar mas se distanciaram em algumas pautas, principalmente econômicas.

No aparente bipartidarismo formado, PFL (hoje DEM) e PMDB (hoje MDB) eram os partidos que controlavam o centro, o fisiologismo, a troca de apoio político por cargos e o controle de prefeituras e estados. O “centrão” nascia ali e se perpetuaria no poder, mantendo-se na mesma essência, mas em maior número, levando o centro fisiológico a um número bem maior de partidos.

Em julho deste ano foi aprovada no Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) a toque de caixa. Apesar da proibição da edição de PECs em anos eleitorais, deputados e senadores concordaram com uma manobra que foi chamada de “estado de emergência”. Em justificativa, o texto legal cita a “elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”.

Nessa PEC, o governo Bolsonaro foi autorizado a turbinar o Auxílio Brasil e ampliar em 1,6 milhão de novas famílias, benefícios exclusivos para caminhoneiros e taxistas, criação do auxílio-gás e ampliação do programa Alimenta Brasil. Todos garantidos até dezembro, apenas.

Embora o primeiro turno de 2022 não tenha definido a eleição presidencial, foi eleito um congresso de perfil conservador, com representantes da extrema-direita bolsonarista, que se renovou pouco e que não dá mostras que romperá com o fisiologismo e, principalmente, com o orçamento secreto.

O PL, partido do atual presidente, elegeu a maior bancada: 99 das 513 cadeiras. Fundado em meados dos anos 1980, serviu para abrigar políticos ligados à ditadura, e hoje é presidido por Valdemar da Costa Neto, preso em 2012 por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no processo do mensalão. No Senado, o PL tem 13 das 81 cadeiras.

Bolsonaro e o PL consolidaram nessas eleições um movimento político-social que demonstra ser o mais estruturado da República. O chamado “bolsonarismo” representa o conservadorismo da sociedade brasileira, conseguindo ser a representação organizada e partidária dessa corrente ideológica. O uso de símbolos nacionais como a bandeira, o uniforme verde e amarelo, o lema “Deus, pátria e família” e a difusão das ideias e ideais em uma rede de comunicação própria, compõe um movimento político-social de extrema relevância, que o primeiro turno demonstrou que não pode ser subestimado.

Mas para consolidar-se como hegemônico no pensamento conservador, e ampliar a aderência de outros grupos sociais e políticos, precisará da reeleição de Bolsonaro. A derrota não encerra o movimento, mas ao perder momentaneamente seu líder popular e populista, se enfraquece muito, assim como outros movimentos com essas características.

Perto do fim?
(Budapeste - Hungria, 17/02/2022) Presidente da República Jair Bolsonaro cumprimenta o Primeiro-Ministro da Hungria, Viktor Mihály Orbán. Foto: Alan Santos/PR
(Budapeste - Hungria, 17/02/2022) Presidente da República Jair Bolsonaro cumprimenta o Primeiro-Ministro da Hungria, Viktor Mihály Orbán. Foto: Alan Santos/PR / Alan Santos

A reeleição de Bolsonaro consolida o bolsonarismo como um movimento político-social que hegemonicamente representará o conservadorismo, o reacionarismo, parte da direita e da extrema-direita no Brasil. Porém, para servir a um plano de poder autocrático dependerá de controle também do judiciário.

Exemplos como Hungria e Venezuela demonstram como movimentos populistas-autoritários se perpetuam no poder. Os dois países, antagônicos em questões ideológicas, passaram por processos semelhantes: controle do sistema judicial e da Suprema Corte, cerceamento da imprensa e da oposição, apoio do exército e um Congresso complacente.
Os chefes de governo ocupam o papel de chefe da nação, ditando como a sociedade deve caminhar ideologicamente, nos costumes e economicamente. Constituem uma autocracia, ou uma “democracia iliberal” como Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, chama o modelo criado por ele.

A tensão constante do governo Bolsonaro com o STF é parte de uma estratégia. Em entrevista recente, o vice-presidente e senador eleito Hamilton Mourão deixou explícito o “plano” de aumentar o número de cadeiras da Suprema Corte e assim controlar decisões e impedir controle constitucional, os freios e contrapesos.

O principal algoz do bolsonarismo no STF, Alexandre de Moraes, age como um delegado de polícia da Corte, e tem características de um agente do “império das leis”, ditando o ritmo e as ações do Supremo. Colocar nele a pecha definitiva de “inimigo da nação” não será tarefa difícil para o bolsonarismo ainda mais consolidado.

Com o controle da Câmara via orçamento secreto e com a maior bancada, no Senado com representantes do núcleo duro do bolsonarismo e também a maior bancada, com o STF alinhado e consolidando o movimento social de massa, o próximo passo é mudar a Constituição Federal.

A reeleição de Bolsonaro representa o fim anunciado da Nova República e das bases da Constituição de 1988. A consolidação do “plano” não é garantida, podendo haver inclusive intervenções e movimentos políticos de abrangência internacional, mas coloca à disposição de Bolsonaro todos os elementos para que esse se efetive.

Lula representa a manutenção da Nova República?
Lula e Renan Calheiros. Parceria antiga.
Lula e Renan Calheiros. Parceria antiga. / Ricardo Stuckert/Divulgação


O próximo ano tem previsões pessimistas na área econômica. O sistema financeiro mundial opera com altas taxas de juros, e concomitante temos a guerra na Ucrânia e as consequências do conflito na questão energética para a Europa. Seja qual for o presidente do Brasil em 2023, vai ter que lidar com um cenário incerto, que exigirá diplomacia e capacidade de organizar o mercado interno.

Lula não terá, portanto, o cenário favorável de seu primeiro governo. Além disso, deverá encontrar dificuldades de governar com um congresso de maioria conservadora. Apenas esses dois dificultadores colocam na mesa a necessidade de Lula capitanear um governo de “centrismo radical”.

Lula não experimentou antes um governo de transição. Foi presidente em um cenário de continuidade, como a faixa presidencial passada por Fernando Henrique em tom solene, quase como o reconhecimento da necessidade daquele momento. Mas agora, caso eleito, deverá necessariamente ter a missão de reconduzir o país aos trilhos democráticos.

Para governar em um governo de transição, Lula deverá aceitar o que disse o filósofo espanhol José Ortega y Gasset: “o homem é o homem e a sua circunstância”.
A aderência de Simone Tebet e a possível ida do MDB ao governo, e os arranjos políticos de campanha e do pós eleição, caso aconteça, deverá ser a base de um possível “pacto centrista”.

Porém, existem outros caminhos para o lulopetismo. Diferente do bolsonarismo, o movimento em torno da figura de Lula depende exclusivamente da existência do líder. Existem outros membros do movimento criado em torno do Bolsonaro, principalmente de sua família, com capacidade de atrair a militância; no caso do Lula, não.

Caso Lula se negue a um governo de centrismo radical, compartilhando poder, poderá caminhar para a manutenção do sistema de semi-presidencialismo, já iniciado pelo Centrão, via orçamento secreto. O que também representa uma quebra no sistema político-social brasileiro. E abre espaço para um novo populista-autoritário, ou mesmo o retorno de Bolsonaro ao poder.

Democracia à própria sorte?

A defesa da democracia se tornou abstrata. Embora ela esteja evidentemente em jogo, não se percebe na sociedade que a manutenção do modelo democrático como sendo uma prioridade. As pautas de costumes e religiosas permeiam o imaginário do eleitor com muito mais força que a democracia como sendo um valor inegociável.

A existência do pensamento conservador em países como a Inglaterra, determinam que haja alternância das visões de mundo e manutenção de um movimento pendular harmônico. No Brasil, o conservadorismo e o reacionarismo se misturam.

Principalmente depois de 2013, onde evangélicos, pequenos comerciantes, representantes do setor agro e empresários de pequeno e médio porte formaram a essência do pensamento conservador brasileiro, que prega a diminuição do Estado, a ordem e o controle social. Mas também atuam com forte viés de preconceito de classe e racial, negação da ciência, ideais separatistas e armamentistas — abandonando o conservadorismo e agindo no reacionarismo.

Sem defesa e sem defensores, a democracia brasileira está por conta própria. O sistema democrático, em qualquer lugar do mundo, só existe plenamente com participação popular e defesa constante — institucional e política.

A definição do segundo turno no Brasil definirá não apenas os rumos políticos e econômicos. Será determinante para saber se a “democracia abandonada” do país irá sobreviver. A Nova República? Essa já acabou.
 

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