"No Brasil, golpe militar é como inflação: não dá pra relaxar", Ricardo Rangel: de analista a candidato
Edmundo Siqueira 28/09/2022 11:50 - Atualizado em 28/09/2022 12:12
Na Esplanada dos Ministérios, em manifestações de rua de 2021, manifestantes pró-Bolsonaro pedem intervenção militar e fechamento do Congresso Nacional e do Supremo
Na Esplanada dos Ministérios, em manifestações de rua de 2021, manifestantes pró-Bolsonaro pedem intervenção militar e fechamento do Congresso Nacional e do Supremo / Orlando Brito
Ricardo Rangel se destaca há alguns anos como formador de opinião — seja como colunista da revista Veja, ou nas redes sociais que ele transita. Dono de uma sólida formação cultural conseguiu ainda atrair para si uma imagem de independência, sendo crítico quando o lulopetismo estava no poder, e atualmente ao presidente Jair Bolsonaro.

Para além da máxima de que “si hay gobierno, soy contra”, Rangel costuma ser uma voz coerente — por vezes mordaz — entre os analistas políticos. Mas, em 2018, decidiu participar diretamente do que analisava. Candidatou-se a deputado federal, recebendo mais de 22 mil votos.

Não conseguiu a cadeira como político naquelas eleições, mas tomou gosto. Neste ano concorre ao mesmo cargo, novamente pelo Rio de Janeiro. Ricardo tenta conciliar as duas características. “Preciso ser menos reflexivo e mais entusiasmado”, conta, aos risos.

O analista que virou político diz que ainda é “apaixonado” pelos “ideais republicanos de liberdade e igualdade”, mas que tem uma visão “racional e pragmática” sobre a política. Ricardo foi candidato pelo partido Novo, que apesar de ter sido sustentação do governo Bolsonaro, chegando a ter um ministro, hoje está na oposição. Dessa vez, Ricardo vem pelo Cidadania.

Sobre Bolsonaro, Ricardo reconhece que ele “é muito competente na comunicação”, mas “espetacularmente incompetente do ponto de vista organizacional e operacional”, e atribui a isso a dificuldade de um golpe capitaneado por ele. Mas faz uma alerta: “no Brasil, golpe militar é como inflação: não dá pra relaxar, o perigo é constante”.

Nesta entrevista, Ricardo Rangel fala sobre o conflito entre ser analista e político, polarização, impeachment, golpe e porque se considera menos Darcy Ribeiro e mais Fernando Gabeira.

Ricardo, você se apresentou como candidato neste ano, em uma das eleições mais importantes desde a redemocratização, e até antes dela. Ao mesmo tempo, você se notabilizou como um importante analista político. É preciso certo distanciamento de um objeto de pesquisa, um problema epistemológico já muito discutido, na medida em que o pesquisador, nessa condição, pode ser levado a ter de repensar, por exemplo, o uso de técnicas ou mesmo a forma de observar. Uma relação próxima entre objeto e observador, sendo ele parte da observação realizada, é um desafio. Esse conhecimento, digamos mais empírico mudou a forma como você enxerga a política? É uma atuação privilegiada ou prejudicada?

Reprodução/Campanha/TSE
Ricardo Rangel - Creio que essa pergunta na verdade são duas, uma é sobre como o analista político impacta o candidato e a outra é como o analista impactará o parlamentar, que, espero, virei a ser. O impacto sobre o candidato é duplo e contraditório: o analista ajuda o candidato na medida em que lhe dá uma compreensão mais profunda e mais abrangente dos problemas públicos, e isso permite que ele seja mais consistente e preparado. Curiosamente, no entanto, o analista atrapalha o candidato na medida em que a abordagem mais aprofundada e cuidadosa do analista conflita com a atitude confiante e empolgada (de quem é capaz de resolver problemas complexos de maneira simples e rápida) que a maior parte do eleitorado espera de um candidato. Meu coordenador de campanha está sempre me chamando à atenção, reclamando que eu preciso ser menos reflexivo e mais entusiasmado (risos).


Quanto ao impacto sobre o parlamentar, ainda não o experimentei, mas não tenho dúvida de que o analista o ajuda amplamente. Os ideais republicanos de liberdade e igualdade e de um país melhor ainda me apaixonam, mas minha visão sobre a política é racional e pragmática: não tenho ilusões sobre o que me espera no Congresso Nacional, sei que soluções simples para problemas complexos estão sempre erradas, que a política é a arte do possível e que para avançar é necessário construir consensos e acordo com pessoas de quem você discorda e, eventualmente, até despreza.

Estamos vivendo tempos de polarização extremada, e uma eleição para presidente que parece cristalizada ao ponto de ser difícil um resultado que surpreenda. A polarização na política não é uma característica somente brasileira, está presente em muitas democracias, e não é em si um problema. Mas tem gerado ódio social e inflado ressentimentos por aqui. Paralelamente vivemos o temor de um golpe, onde o bolsonarismo ameaça contestar o resultado das urnas ou algum tipo de caos institucional. Polarização e a ideia do golpe seriam, na sua visão, uma narrativa e elementos que compõem uma estratégia, ou estamos realmente sob risco democrático?

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No Brasil, golpe militar é como inflação: não dá pra relaxar, o perigo é constante. Nossa tradição é autoritária, as Forças Armadas já participaram de uma dúzia de golpes e tentativas de golpe e continuam dando demonstrações frequentes de não ter apreço pela democracia. Dito isso, é improvável que haja uma tentativa de golpe e praticamente impossível que um golpe, se tentado, seja bem sucedido. Improvável porque Bolsonaro é muito competente na comunicação, mas espetacularmente incompetente do ponto de vista organizacional e operacional. Além disso, as Forças Armadas são antidemocráticas, mas não parecem ter apetite para uma quartelada, especialmente sem ter ideal claro nem objetivo concreto além de garantir uma boquinha.

"Para levar as pessoas às ruas, você precisa que as pessoas acreditem em você. Nem Lula nem Bolsonaro merecem crédito, mas Bolsonaro, manipulando as redes e instrumentalizando o ressentimento, fez com que seus apoiadores acreditassem em uma realidade paralela em que o capitão é um herói solitário contra “o sistema”. No mundo maravilhoso da bolsosfera, Jair Bolsonaro é um homem honesto, não existe corrupção no governo, rachadinha não é crime, não tem problema comprar imóvel com dinheiro vivo e a economia vai bem. " (Ricardo Rangel)
Ainda que tentado, considero praticamente certo que dê errado. Os tempos são outros. A Guerra Fria acabou, os EUA são a favor da democracia no continente, o Brasil precisa dos mercados estrangeiros. Bolsonaro tem mais de 50% de rejeição, a sociedade civil já deixou claro que não quer golpe e um eventual golpe será contra alguém que terá acabado de ser legitimamente eleito. Por fim, em um mundo em que todo mundo tem uma emissora de TV no bolso, é impossível fechar o Supremo, o Congresso ou a imprensa. A chave do sucesso é convencer todo mundo muito rápido de que o golpe foi bem sucedido. E isso é impossível nos dias de hoje.


Outra coisa é achar que a democracia está segura. Não está. As instituições já deixaram claro que lhes falta ânimo para defender a democracia. Só quem a defende são o Supremo e a imprensa. Os exemplos estrangeiros demonstraram que é no segundo mandato que o autocrata quebra a espinha da democracia, isso ficou claro na Hungria, na Turquia, em Israel. Se Bolsonaro for reeleito, a democracia tende a murchar. Por isso é imperioso derrotá-lo em outubro.

Edmundo Siqueira - Em 2013 tivemos movimentos de rua e, embora tivesse pautas difusas, a direita e a centro-direita se apoderaram daquele sentimento coletivo e souberam aproveitar melhor o movimento. A extrema-direita, agora com Bolsonaro, tem conseguido movimentar melhor tanto as manifestações de rua quanto o fazer político desse mundo digital. E a esquerda parece ter perdido a capacidade de mobilizar as pessoas, para além da militância. Como você avalia esses movimentos e por que o bolsonarismo consegue levar mais gente para a rua, como vimos no último 7 de setembro?

Ricardo Rangel - Junho de 2013 deixou claro que a população estava insatisfeita com um sistema representativo no qual ela não se sentia incluída — algo especialmente verdadeiro para a classe média baixa evangélica da periferia das grandes cidades e para a classe média alta emergente dos produtores rurais. A classe política fechou os olhos solenemente para esse recado e continuou, como continua até hoje, com suas velhas práticas.

Nos poucos anos seguintes, a política econômica de Dilma derrubou o PIB em mais de 8% e dobrou o desemprego. Ao mesmo tempo, a Lava-Jato revelou um monumental esquema sistêmico de corrupção e alavancou o ressentimento de uma população que enfrentava dificuldades econômicas contra políticos que enriqueciam de maneira desonesta. A esquerda lidou mal com isso, leu o impeachment como um golpe dos maus contra os bons, e investiu em um “nós contra eles” que teve por consequência a criação de um antipetismo raivoso. Por fim, a extrema direita foi extraordinariamente competente ao manipular as redes sociais e virar o “nós x eles” contra o feiticeiro. O resultado foi a eleição de Jair Bolsonaro.
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Para levar as pessoas às ruas, você precisa que as pessoas acreditem em você. Nem Lula nem Bolsonaro merecem crédito, mas Bolsonaro, manipulando as redes e instrumentalizando o ressentimento, fez com que seus apoiadores acreditassem em uma realidade paralela em que o capitão é um herói solitário contra “o sistema”. No mundo maravilhoso da bolsosfera, Jair Bolsonaro é um homem honesto, não existe corrupção no governo, rachadinha não é crime, não tem problema comprar imóvel com dinheiro vivo e a economia vai bem.

Os bolsonaristas que vão as ruas o fazem em apoio não ao presidente, mas a uma figura inexistente, alegórica. Para conseguir isso, é preciso mentir e distorcer a realidade sem qualquer freio, algo difícil de fazer para a maioria das pessoas. Obviamente, é impossível manter a alegoria indefinidamente, e metade dos que votaram em Bolsonaro já percebeu o engodo e não vão repetir o voto. A outra metade mergulhou no autoengano e vive em uma realidade paralela, mas mais cedo ou mais tarde perceberá que foi enganada e abandonará Bolsonaro — aliás, é bom lembrar que grande parte, senão a maioria, dos que hoje odeiam Lula e amam o capitão, um dia amou Lula.

Edmundo Siqueira - Darcy Ribeiro foi um político que também atuava no campo do conhecimento, da produção literária, da pesquisa e das ciências sociais. Deixou legados de grande importância, inclusive para Campos, com a implantação da UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense). A democracia pressupõe que qualquer pessoa possa se candidatar a cargos públicos, garantindo direitos e prerrogativas iguais. Todos seriam sujeitos de direitos e deveres que permitam agir representativamente e com capacidade postulatória. Como você avalia a participação de intelectuais, jornalistas, acadêmicos e filósofos na política direta, eleitoral, sob uma ótica da formação de uma casta onde a sabedoria seria a virtude? Você se considera alguém como Darcy Ribeiro?

Ricardo Rangel - É positivo que pessoas de todos os setores participem da política: quanto mais olhares diferentes houver no Parlamento, mais bem representada estará a sociedade brasileira — não é bom nem para o Brasil nem para a classe política que o Parlamento seja composto exclusivamente de políticos profissionais (o que junho de 2013 ilustrou bem). E é particularmente positivo que gente culta e preparada, que está acostumada a observar e pensar o país, participe da política partidária. Dito isso, não gosto da ideia de formação de castas, nem acho que o conhecimento necessariamente leve à sabedoria.

Tenho enorme admiração por Darcy Ribeiro, mas o vejo mais como um visionário, uma fonte de ideias e um entusiasmado formulador de projetos, do que como um parlamentar no sentido comum do termo, de alguém que vive o dia-a-dia da atividade parlamentar no Congresso. Fernando Gabeira é uma referência mais próxima de como me enxergo e de como espero atuar no Parlamento.


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