E se o Mercado em Campos fosse aberto? Ponderações da academia
Edmundo Siqueira 13/02/2022 20:26 - Atualizado em 13/02/2022 20:28
Reprodução
Não é possível entender os processos de expansão urbana de Campos dos Goytacazes sem levar em conta alguns de seus elementos centrais: a Praça São Salvador, o rio Paraíba e o Mercado. Praça e Mercado como pontos de efervescência social, cultural, política e comercial da cidade. Rio como uma histórica comunicação com os municípios vizinhos, e como via de escoamento da produção.
Os reordenamentos urbanos em Campos sempre obedeceram a uma perspectiva higienista. Em 1902, o então presidente da Câmara, Benedito Pereira Nunes, encomendou a outro campista e engenheiro sanitarista, Saturnino de Brito, um desses planos. Buscando “modernizar” a cidade, com saneamento e remodelação do espaço urbano, Saturnino considerou o Mercado um dos maiores “problemas”.
Leia mais: Os 100 anos do Mercado, seus personagens e suas histórias.
Foram feitas diversas intervenções e mudança de local, até que em 15 de setembro de 1921, com a presença dos permissionários, o então prefeito Cezar Tinoco inaugura um novo espaço para o comércio de gêneros alimentícios popular. Com uma imponente Torre do Relógio de inspiração francesa, amplos espaços e localização privilegiada, o mercado estava pronto.
Mas, hoje ele atende aos seus objetivos? As bancas dos feirantes possuem boas condições? É um espaço de convivência saudável? O prédio cumpre seu papel de educação patrimonial? Buscando compreender o papel — histórico e atual — do Mercado Municipal em Campos, a partir das provocações feitas em publicação anterior (leia aqui), estabeleceu-se um diálogo com dois acadêmicos que desenvolveram suas teses tendo o Mercado como objeto. A geógrafa Ianani Dias, mestranda na UFF Campos do programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Polícias Públicas (PPGDAP), e o historiador Carlos Freitas, que publicou sua tese sobre o Mercado pela Uenf. 
Edmundo Siqueira - Qualquer Mercado Municipal é um ambiente de vivências, sejam elas comerciais, políticas, culturais ou sociais. E claro, que dialogam entre elas. Como você enxerga o Mercado de Campos nessa questão, nos moldes que ele está hoje? O que te motivou a pesquisar o Mercado? 
Ianani Dias - Por ter múltiplas vivências, o mercado também tem múltiplas percepções. Quando o poder público apresentou dois grandes projetos de intervenção urbanística pro Centro nas últimas duas décadas, as divergências sobre as funções e formas de uso do espaço se apresentaram. Nas colunas de jornais, por exemplo, o debate em torno da valorização do patrimônio material e a necessidade de retirar as instalações da feira e do camelódromo de sua lateral é bastante pontuada. Enquanto isso, muitos permissionários que estão ali por muitas gerações são contra a retirada das mesmas instalações por compreenderem que há uma relação econômica e cultural entre os lugares. Daí o meu interesse em compreender os conflitos em torno da disputa sobre o que é o significado deste patrimônio por diferentes sujeitos.
Carlos Freitas -
 Os mercados, desde a antiguidade, são os locais por excelência para as trocas comerciais e também sociais. Nessa óptica, o Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes não foge à regra. Ali, com seus altos e baixos, mantém a sua função de ser um local de trocas. Poucas cidades ainda os mantém em sua função primordial, mas continuam a oferecer produtos e serviços à população. Esse Mercado, objeto de minha pesquisa de Mestrado pela UENF, foi uma experiência gratificante e enriquecedora. O motivo principal foi a identificação afetiva com o local e a importância que ele possuiu e ainda mantém para a cidade.
" em uma cidade que tem muita dificuldade de valorizar a cultura popular. Esconder, retirar o que lhe dá significado é perder um grande potencial de diferenciação e autenticidade principalmente para o tão requisitado turismo. É na feira que temos o peixe cumbaca, o feijão guandu, a farinha de São Francisco, o queijo de São Fidélis, os biscoitos caseiros, etc" (Ianani Dias)
Edmundo Siqueira -
As intervenções históricas, no caso do Mercado campista, obedeceram a uma perspectiva higienista. Os primeiros regimentos trouxeram termos como “algazarra” e previam expulsão de baderneiros, procurando criar um ambiente “limpo” para as classes mais abastadas da cidade. Como você avalia que as intervenções mais recentes foram sentidas pelos permissionários e usuários?
Ianani Dias - A pesquisa está em fase inicial e ainda não cheguei na nesta etapa por isso, não possuo qualquer fundamento para falar sobre o que os permissionários e usuários acham do local.
"De forma que, independentemente do que for feito, haverá grandes reclamações por parte de comércios e usuários. Toda modificação resulta em resistências, resta planejamento em conjunto, sem prevalecer um ou outro grupo. Cousa difícil em administração pública...Mas precisa ser realizada uma ampla reordenação dos espaços e a questão da mobilidade." (Carlos Freitas)
Carlos Freitas - 
A questão do regimento interno de funcionamento, pelo que encontrei na pesquisa, só houve um. Bem direcionado à questão sanitária, qualidade dos produtos, regras d3 convivência e uso dos espaços, suas divisões, horários de funcionamento e, principalmente, a cobrança das taxas. Durante alguns anos, o Mercado foi uma das maiores arrecadações do município. As intervenções nas suas estruturas, durante esse século de funcionamento ali, refletem a visão embotada da administração pública com o acréscimo de permissionários e a subdivisão do espaço. Sem se preocupar com o que foi planejado. Daí a situação atual, caótica. Funciona mais por iniciativa dos comerciantes do que pela administração do espaço.
Edmundo Siqueira - Uma das propostas é a transferência da Feira para a Praça da República, localizada atrás da Rodoviária Roberto da Silveira, com anuência e estabelecimento de condições, e criando-se a estrutura necessária (e melhores que as atuais), abrindo a possibilidade do belo e centenário prédio do Mercado se tornar visível e permitir a exploração e vivência em seu entorno. Exemplos como os Mercados de São Paulo e Belo Horizonte demonstram como podem ser bem sucedida a iniciativa. Como você avalia essa iniciativa?
Mercado Municipal de São Paulo
Mercado Municipal de São Paulo / Reprodução
Mercado Central de Belo Horizonte
Mercado Central de Belo Horizonte / Reprodução
Ianani Dias - A ideia de retirar a feira que hoje é parte complementar da história do Mercado é um grande ataque ao patrimônio em uma cidade que tem muita dificuldade de valorizar a cultura popular. Esconder, retirar o que lhe dá significado é perder um grande potencial de diferenciação e autenticidade principalmente para o tão requisitado turismo. É na feira que temos o peixe cumbaca, o feijão guandu, a farinha de São Francisco, o queijo de São Fidélis, os biscoitos caseiros, etc.. O Mercado sem isso o que viraria? Pra quem serviria? Deixo claro que isso não significa que o mercado não deva ter intervenções urgentes para melhorar as condições de trabalho, consumo e estrutura. No entanto, se pensarmos em métodos de planejamento participativo onde os diferentes agentes possam ser inseridos, podemos ter um projeto que seja inclusivo ou invés de buscar soluções que excluam aqui aqueles que vivem ali no cotidiano. Se formos olhar um exemplo, acho que o Mercado Ver-o-Peso pode ser visto como um. Rico culturalmente, ele teve a participação dos feirantes na construção do projeto público de intervenção, inclusive na parte do orçamento, o que reforçou seu reconhecimento enquanto um lugar único e um requisitado ponto turístico nacional e internacional. Acho que o turismo em Campos pode ser um dos melhores do RJ, acredito muito nessa cidade. mas, na minha opinião, uma parte dela tem que deixar de ficar com vergonha do ela realmente é e parar de tentar sempre ser outra.
Carlos Freitas - A proposta de transferência da área ocupada pela feira para outro local, mesmo que seja próximo, vai levar a uma série de fatores contrários. O maior deles será pelos comerciantes, pois a integração dos diversos tipos de comércios funciona como uma engrenagem. Basta qualquer modificação que haverá todo um reflexo na área próxima. Pelo que percebi em minha hg as pesquisas, o comércio da área é interdependente, inclusive com o sistema de transporte. Qualquer coisa que seja proposta, deve ser muito estudada e debatida com os comerciantes do Mercado e do entorno. De forma que, independentemente do que for feito, haverá grandes reclamações por parte de comércios e usuários. Toda modificação resulta em resistências, resta planejamento em conjunto, sem prevalecer um ou outro grupo. Cousa difícil em administração pública...Mas precisa ser realizada uma ampla reordenação dos espaços e a questão da mobilidade. Tarefa difícil e penosa, principalmente pela arrogância das partes envolvidas e ressentimentos antigos.

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