Ricardo André Vasconcelos: Como grãos de areia
Ricardo André Vasconcelos - Atualizado em 28/12/2024 10:15
Folha no Ar com Ricardo André
Folha no Ar com Ricardo André / Genilson Pessanha
Se as democracias estão morrendo pelo mundo ou se o problema se restringe a uma de suas facetas — a crise de representação política — só o tempo dirá. Consenso mesmo é a constatação de que alguma coisa está fora da ordem, em transição para um status quo incerto e não sabido.
Apenas como reflexão, podemos imaginar que nesses poucos milhares de anos que conhecemos como nossa civilização houve momentos de processos de mudanças e que só foram demarcados muito depois, às vezes, séculos. Por isso, qualquer previsão, conclusão ou especulação têm amplas de chances de dar de cara com o paredão impiedoso da História.
Convencionou-se, por exemplo, que a tomada da Bastilha, que levou à eclosão da Revolução Francesa (1789), marca o fim da Idade Moderna e o início da Idade Contemporânea, que se arrasta (por enquanto) até nossos dias. Antes, a Idade Média, conhecida como Era das Trevas, teve início com a queda do último imperador romano, Rômulo Augusto, em 476 dC até a tomada de Constantinopla pelos Turcos, em 1456, pondo fim a oito séculos de horrores, inquisição em contraposição à ascensão do iluminismo, humanismo e a descoberta do novo mundo ao Sul do Globo Terrestre.
Aliás, nas trevas da Idade Média a Terra era plana e centro do universo. A pena para quem discordasse era a fogueira da “santa” Inquisição da Igreja católica. Galileu Galilei teve de abjurar suas convicções científicas na sábia opção por manter a prodigiosa cabeça hígida sobre os ombros.
Pois é. Desde que o mundo é mundo essas transformações ocorrem nas sociedades de tempos em tempos e com a velocidade condizente com cada época. Mas um aspecto é possível destacar como traço comum em todas essas passagens entre as Eras: a evolução. Vendo na distância do hoje temporal nos faz crer que a seguinte mostrou-se melhor que a que antecedera e assim sucessivamente. A História Antiga, por exemplo, que teria durado três mil e tantos anos, foi precedida de milhares de anos da Pré-história, enquanto entre a Antiga e a Moderna foram outros quatro mil anos e entre esta e Idade Média outros dois mil anos. Como dito, a Era classificada como Idade Média teve seus 800 anos, mas a seguinte, a Moderna, apenas 350 anos.
A Idade Contemporânea, inaugurada com as cabeças da realeza rolando em praça pública numa Paris infinitamente menos charmosa que a atual, seria a que estamos vivendo neste primeiro quarto do século XXI e na iminência de uma nova compartimentação histórica.
Há discussões acadêmicas sobre isso e algumas conclusões de que já sobrevieram pelo menos duas Eras depois da Contemporânea: a Pós-Moderna e uma outra que não se sabe o nome, mas que o marco inauguratório teria sido a criação de um sistema de comunicação militar chamado Internet, que se espraiou pelo universo com velocidade e abrangência infinitamente maiores que os inventos mais fantásticos conhecidos até então.
Sem cabotinisno patriótico, poderíamos dizer que o século XX começou quando o mais genial brasileiro (o segundo é Ayrton Senna), Alberto Santos Dumont (1873-1932), sobrevoou por 220 metros sobre o Campo de Bagatelle, em Paris, no comando de uma geringonça de madeira, tecido e um motor de 50 hp batizado de 14 Bis. Menos de três décadas depois, independente da contribuição dos norte-americanos irmãos Wright, o avião já era parte da paisagem do mundo, numa evolução técnica jamais vista em tão pouco tempo, inclusive no Brasil de 1932, apesar de ser um país pobre, agrário e de maioria de analfabetos. A recém instalada ditadura Vargas já tinha sua incipiente frota de aviões o suficiente para voar armada sobre os céus da São Paulo, cuja população se revoltara contra o poder central para cobrar a prometida Constituinte que embasara a revolução que trouxera Vargas dos Pampas para assumir o poder dois anos antes. Em seu refúgio no litoral paulista, o gigante Dumont, a despeito de seu pouco mais de 1,50 de altura, não suportou ver sua invenção armada e pilotada por brasileiros para matar brasileiros. Já combalido por uma depressão profunda, tirou a própria vida, enforcando-se em seu quarto de hotel.
O século XX parece que teve anos de menos para História demais. Invenções como o avião e a evolução de outros meios de transporte tornaram o mundo menor e mais próximo; o homem pisou na lua sem sequestrá-la do romantismo dos amantes; duas guerras mundiais e sofisticação das armas, algumas com capacidade de destruir o planeta dezenas de vezes; avanços na medicina puseram fim às epidemias e pode-se chegar aos 100 de idade de forma quase ordinária, enquanto décadas atrás a expectativa média de vida não passava dos 50 anos. O século XX também começou, já em sua segunda década, com uma expectativa de transformação do mundo, com a implantação do comunismo na criação da União Soviética, que viria a fracassar seis décadas depois, deixando um legado de autoritarismo e males tão grandes quanto aos que apregoava combater. Em 1989, uma conjuntura global, liderada pelo presidente soviético Michael Gorbachev e outros três chefes de potências mundiais, Ronald Reagan (EUA), Margaret Thatcher (Reino Unido) e o papa João Paulo II, derrubou o regime que a então URSS nunca conseguiu exportar para o resto do mundo, além de seus países satélites capturados pela força.
Pois bem. Quase 40 anos depois de Pedro Bial, ao vivo, no Jornal Nacional, reportar a queda do muro de Berlim, o mundo surpreende trazendo de volta o ectoplasma de um comunismo extinto para sequestrar corações e mentes impingindo um medo e pavor em adultos ignorantes e letrados nem tanto, da mesma forma como qualquer um de nós tinha, do bicho papão aos 3 anos de idade.
Essa arenga simplista “direita x esquerda” só se justifica em seu sentido original da ocupação geográfica do salão do Palácio de Versalhes durante a Assembleia Nacional Constituinte, logo após a Revolução Francesa. À direita do presidente dos trabalhos sentaram-se os que defendiam o antigo regime absolutista e à esquerda, os que pugnavam pelos ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade.
Nem mesmo esse conceito original é suficiente para arrimar a polarização política que domina a disputa pelo poder em todo o mundo. Incomodar-se com a polarização é negar a possibilidade de posicionamento em um dos polos do espectro ideológico. Sim, até a maior democracia do mundo é bipolar. Desde 1776 os Estados Unidos são comandados ou pelos Democratas ou Republicanos, em eleições realizadas rigorosamente de 4 em 4 anos. É certo que de um ponto para cá as bandeiras foram trocadas. Os republicanos lideraram a luta pela abolição da escravatura lá nos EUA, enquanto os democratas defendiam os interesses dos grandes fazendeiros. Mas isso é outra história e não há no lado de cima de Nostra América esquerda ou direita e sim, direita e centro direita.
A novidade preocupante é o crescimento de uma Extrema Direita fundada na banalização do mal e empoderada pelo voto.
E é justamente nesse limbo em que vivemos e cuja nomenclatura ainda há de ser batizada por nossos pósteros que se instala uma certeza confirmada pelos séculos: Donald Trump e seus congêneres que por aí estão e os que ainda estão por vir, assim como seus opostos, serão só mais um grão de areia nessa fantástica ampulheta nas mãos de Chronos.
* Jornalista e advogado previdenciarista

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