Arthur Soffiati - O transatlântico e o iceberg
Mas, como os antigos transatlânticos, ele corresponde a uma pirâmide social. Os quinze andares superiores foram destinados à primeira classe. Os bilionários, como Elon Musk, ocupam esses pavimentos. Os milionários alojam-se do 16° ao 30º andares. O transatlântico se transformou numa espécie de pequeno país. Quem quer fugir do imposto de renda muda-se de mala e cuia para o Kosmopolik e passa a ser um cidadão em trânsito.
Para os passageiros de classe média alta, foram reservados os andares entre o 31° e o 40º. Para os remediados (pobres), foram reservados 10 andares. Afinal, justiça seja feita, todos merecem viajar. Infelizmente, não foi possível reservar nenhum andar para os miseráveis. Mas não existe remorso na empresa proprietária, na imensa tripulação do transatlântico e entre seus passageiros em todos os níveis. Apesar de todos os esforços dos governantes, não foi possível promover a distribuição de renda para melhorar a vida daqueles que vivem abaixo da linha de pobreza. A conclusão quase geral é que há pessoas nascidas para a pobreza extrema. Trata-se de algo inerente à natureza humana. Não alimentemos culpas e remorsos.
O Kosmopolik partiu para seu primeiro cruzeiro em 2030. Como os bilionários e os milionários passaram a morar naquela cidade flutuante, o roteiro incluía todos os oceanos. O espírito geral era triunfalista. Apesar de todos os problemas ambientais, o transatlântico representava o triunfo da civilização sobre a natureza.
No final de 2024, o iceberg A23a, desprendeu-se do continente Antártico e passou a derivar pelo oceano Atlântico. Até então, era o maior iceberg do mundo, três vezes maior que a cidade de São Paulo e pesando 1 trilhão de toneladas. Nenhum navio colidiu com ele, que derreteu aos poucos e elevou o nível dos mares. Em 2030, todos os oceanos estavam povoados por icebergs maiores que o A23a. A ciência náutica desenvolveu tecnologia para enfrentá-los, seja detectando-os à longa distância, seja com canhões de energia para derretê-los.
Assim, cercado de segurança, o Kosmopolik singrava os sete mares. Vários icebergs foram derretidos por seus equipamentos de segurança. Mas nunca se pode ter certeza quanto à superioridade da ciência desenvolvida pela civilização mais avançada de todas que a Terra já abrigou. Eis que os radares detectaram um gigantesco iceberg. Embora toda a tripulação tenha sido mobilizada, a confiança na vitória era indiscutível. Na verdade, havia uma legião de icebergs na proa do transatlântico.
A tecnologia disponível em 2030 era indiscutivelmente superior à de 2024. Por mais que o transatlântico estivesse cercado por uma legião de icebergs, a vitória sobre eles era garantida. Mesmo assim, as avaliações entre os membros da tripulação começaram a se chocar. Os comandantes confiavam na superioridade do Kosmopolik. Os subordinados não tanto. Havia oficiais e marinheiros experimentados entre eles. Havia também cientistas. A discórdia se instalou. Uns diziam que a colisão era inevitável, mas que o transatlântico tinha um couraçado que resistiria ao choque. Alguns outros entendiam que o super-navio venceria, mas sofreria graves avarias. Uns poucos avaliavam que seria o fim do transatlântico, como aconteceu com o Titanik.
Os bilionários e milionários – homens e mulheres – inteiraram-se do problema, mas o trataram com certa indiferença. Afinal, os almoços e jantares eram formidáveis. As aventuras amorosas entre casados e solteiros eram mais importantes que tudo (menos que o dinheiro, claro). Nas classes inferiores, as informações chegavam distorcidas. O risco de afundamento atemorizava os passageiros, mas eles o entregaram aos especialistas e, sobretudo, a Deus. Houve orações, mas bastante confiança nos técnicos.
Mais uma vez, o confronto entre natureza e cultura ocorre. Devemos levar em conta o acaso, o imprevisível, o erro. Mas será preciso mudar de rumo. Não se sabe como.
Depois de dez anos de intensos trabalhos, o Kosmopolik ficou pronto. Trata-se do maior transatlântico de todos os tempos. Estados Unidos, União Europeia e países árabes se uniram na sua construção. O empreendimento foi mais caro que o mais custoso projeto espacial. Ele corresponde a um prédio de cinquenta andares e tem duzentos metros de cumprimento.
Mas, como os antigos transatlânticos, ele corresponde a uma pirâmide social. Os quinze andares superiores foram destinados à primeira classe. Os bilionários, como Elon Musk, ocupam esses pavimentos. Os milionários alojam-se do 16° ao 30º andares. O transatlântico se transformou numa espécie de pequeno país. Quem quer fugir do imposto de renda muda-se de mala e cuia para o Kosmopolik e passa a ser um cidadão em trânsito.
Para os passageiros de classe média alta, foram reservados os andares entre o 31° e o 40º. Para os remediados (pobres), foram reservados 10 andares. Afinal, justiça seja feita, todos merecem viajar. Infelizmente, não foi possível reservar nenhum andar para os miseráveis. Mas não existe remorso na empresa proprietária, na imensa tripulação do transatlântico e entre seus passageiros em todos os níveis. Apesar de todos os esforços dos governantes, não foi possível promover a distribuição de renda para melhorar a vida daqueles que vivem abaixo da linha de pobreza. A conclusão quase geral é que há pessoas nascidas para a pobreza extrema. Trata-se de algo inerente à natureza humana. Não alimentemos culpas e remorsos.
O Kosmopolik partiu para seu primeiro cruzeiro em 2030. Como os bilionários e os milionários passaram a morar naquela cidade flutuante, o roteiro incluía todos os oceanos. O espírito geral era triunfalista. Apesar de todos os problemas ambientais, o transatlântico representava o triunfo da civilização sobre a natureza.
No final de 2024, o iceberg A23a, desprendeu-se do continente Antártico e passou a derivar pelo oceano Atlântico. Até então, era o maior iceberg do mundo, três vezes maior que a cidade de São Paulo e pesando 1 trilhão de toneladas. Nenhum navio colidiu com ele, que derreteu aos poucos e elevou o nível dos mares. Em 2030, todos os oceanos estavam povoados por icebergs maiores que o A23a. A ciência náutica desenvolveu tecnologia para enfrentá-los, seja detectando-os à longa distância, seja com canhões de energia para derretê-los.
Assim, cercado de segurança, o Kosmopolik singrava os sete mares. Vários icebergs foram derretidos por seus equipamentos de segurança. Mas nunca se pode ter certeza quanto à superioridade da ciência desenvolvida pela civilização mais avançada de todas que a Terra já abrigou. Eis que os radares detectaram um gigantesco iceberg. Embora toda a tripulação tenha sido mobilizada, a confiança na vitória era indiscutível. Na verdade, havia uma legião de icebergs na proa do transatlântico.
A tecnologia disponível em 2030 era indiscutivelmente superior à de 2024. Por mais que o transatlântico estivesse cercado por uma legião de icebergs, a vitória sobre eles era garantida. Mesmo assim, as avaliações entre os membros da tripulação começaram a se chocar. Os comandantes confiavam na superioridade do Kosmopolik. Os subordinados não tanto. Havia oficiais e marinheiros experimentados entre eles. Havia também cientistas. A discórdia se instalou. Uns diziam que a colisão era inevitável, mas que o transatlântico tinha um couraçado que resistiria ao choque. Alguns outros entendiam que o super-navio venceria, mas sofreria graves avarias. Uns poucos avaliavam que seria o fim do transatlântico, como aconteceu com o Titanik.
Os bilionários e milionários – homens e mulheres – inteiraram-se do problema, mas o trataram com certa indiferença. Afinal, os almoços e jantares eram formidáveis. As aventuras amorosas entre casados e solteiros eram mais importantes que tudo (menos que o dinheiro, claro). Nas classes inferiores, as informações chegavam distorcidas. O risco de afundamento atemorizava os passageiros, mas eles o entregaram aos especialistas e, sobretudo, a Deus. Houve orações, mas bastante confiança nos técnicos.
Por mais que a tecnologia fosse avançada, o Kosmopolik colidiu com os icebergs. Não houve afundamento. Por enquanto, o transatlântico esmurra os blocos de gelo e é esmurrado por eles. A confiança na tecnologia foi substituída pelo medo. Todos estão mobilizados – ricos e pobres. Mas, como numa luta de boxe equilibrada, não se pode fazer uma previsão segura sobre a vitória de um dos lados. Houve tempo para pedir socorro. Houve tempo para ele chegar, mas tem sido de pouca valia. Com toda a inteligência artificial, não se pode afirmar se o Kosmopolik sairá dessa enrascada em que se meteu ou se sucumbirá.
Mais uma vez, o confronto entre natureza e cultura ocorre. Devemos levar em conta o acaso, o imprevisível, o erro. Mas será preciso mudar de rumo. Não se sabe como.