Arthur Soffiati - Solidão
* Arthur Soffiati - Atualizado em 12/10/2024 09:26
Arthur Soffiati
Arthur Soffiati / Divulgação
Quando abriram um canal na restinga para instalar um estaleiro dentro das empresas de Eike Batista, eu disse, num ato público, que conhecia a restinga como a palma da minha mão. Mas que aquele rasgo parecia uma navalhada nela. Houve quem chorasse com minhas palavras. A maioria das pessoas é socialista e entendeu que eu dizia ter a navalha passado sobre os pequenos produtores rurais que perderam suas terras. Eles estavam incluídos na minha declaração, mas eu me referia aos terrenos de restinga, a uma lagoa que foi cortada ao meio, às plantas que foram removidas pelas instalações portuárias, aos animais silvestres expulsos. Além dos pobres humanos, eu falava da pobre natureza. Mas o socioambientalista não entende. Ele acha que o rico destrói a natureza e merece críticas. O pobre pode. Já disse, como Marx, que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. Ricos e pobres humanos entendem que Deus fez a naturezaparaeles.

Então, hoje, não participo mais de eventos em que o foco seja apenas social. Fico sozinho, porque não há eventos que defendam o ambiental por aqui. Trata-se de uma solidãofilosófica. E me impressiona que as pessoas de todos os níveis de instrução ainda estejam tão indiferentes à crise ambiental. As campanhas políticas nos municípios do norte/noroeste fluminense a ignoraram. Salvo engano, não ouvi nenhum candidato mencionar a questão das mudanças climáticas.

Solidão teórica: a maioria dos historiadores ambientais se encerra em arquivos, bibliotecas, gabinetes à procura de documentos que informem sobre a visão que determinadas sociedades têm de natureza. Eu vou a campo examinar os documentos criados pela própria natureza. Estudo as transformações do ambiente produzidas pelos humanos diretamente em terras, águas, plantas e animais. Quando saio com meus colegas para o campo, noto que eles ficam perdidos. O mundo deles é o gabinete. O meu mundo é o próprio mundo. Solidãoteóricae metodológica mesmo.

Minha mãe estudava piano e dança clássicos antes de se casar. Casada com um militar, ela abandou a dança e a música, mas continuou ouvindo música clássica em emissoras de rádio. A música chegava aos ouvidos do marido e dos filhos. Aproximei-me dessa expressão musical aos 9 anos e gostei. Pelo rádio aprendi muito. Não pude estudar um instrumento porque isso era coisa de viado, segundo meu pai. Fiquei só na audição e refinei meu gosto. Hoje, entendo que a música é um fenômeno de todas as culturas. Respeito a música de todos os povos. Mas tenho meu gosto. Noto que ninguém por aqui gosta. Não entrarei no discurso do decolonial. Ele tem limites, como mostrou a escritora Gabriela Wiener no romance “Exploração”. Solidãoestética.

Gosto de ler desde os 12 anos. Não apenas livros relacionados à minha formação em história, mas livros sobre outros saberes. Meu gosto por botânica voltou depois de velho. Amo as plantas e sofro com o seu sofrimento. Elas não devem sofrer e não devem perceber que não sofrem. Tenho atração por plantinhas que vivem humildemente em seu canto.

Mas gosto também de poesia e ficção. Gosto dos clássicos e de acompanhar os novos, embora quase sempre me decepcionem pela superficialidade e pela atração exercida pelo mercado, televisão e cinema. Os ficcionistas estão escrevendo mais roteiros que contos e romances. Mas eles estão sendo abandonados pelos leitores. Na minha juventude, eu não podia ler tanto porque era absorvido pelo trabalho. Agora, aposentado e idoso, tenho mais tempo para leitura. Contudo, ela, a leitura, está em declínio com as redes sociais. Quem não gostava de ler, está se exibindo nas redes com frases feitas e com figuras. Quem gostava também está sucumbindo ao exibicionismo e ao narcisismo. Sem reclamação. É um sinal do mundo digital. Ter um pé no mundo analógico causa estranheza a quem foi formado nele e a quem sucumbiu a ele. Muita informação e pouca formação. Informação verdadeira e falsa. Informação caótica.
Gosto de cinema num mundo em que as salas de exibição de rua já faliram e em que as salas de shoppings estão falindo. As plataformas estão triunfando e, com elas, também o cinema. Estimula-se o filme, não o cinema. Existe uma diferença entre cinema e filme. Cinema é uma arte que reúne desenho, fotografia, pintura, literatura, teatro e música. Cinema valoriza a fotografia em movimento. Filme enfatiza o roteiro e a atuação. Vale dizer, a literatura e o teatro. Quem busca um filme, está à procura de uma história e de performances que distraiam. Quem busca cinema, valoriza a estética.

Gosto de refletir sobre o mundo que me chega pela leitura e pelo conhecimento direto dele. Não faço leituras gratuitas. Não viajo como turista. Estou sempre à procura do conhecimento, não apenas pelo prisma teórico. A teoria serve como meio para o conhecimento empírico, e este é insubstituível para mim. Daí, gostar de sair para conhecer o mundo real. Mas meus hábitos estão em franco declínio, acentuando minha solidão.

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