Arthur Soffiati - Um rio grande no sul
* Arthur Soffiati 11/05/2024 08:41 - Atualizado em 11/05/2024 08:41
Arthur Soffiati
Arthur Soffiati / Divulgação
O Brasil é um país construído historicamente como todos os outros. Não vale a pena ser muito patriota. Pode-se amar um país sem a crença ingênua de que ele é criação de Deus ou existe desde Adão e Eva. O mesmo princípio vale para as divisões internas de um país. O Brasil começou com um território bem menor que o atual. Os estados de hoje mudaram de dimensões e de capitais. Durante a história humana, os rios permanecem. Seus cursos foram barrados, desmatados, poluídos. No fundamental, porém, eles continuam existindo.
No Rio Grande do Sul, o maior rio serve de fronteira entre ele e o estado de Santa Catarina. Entre ele e a Argentina. Trata-se do rio Uruguai. No interior do estado, existem outros, todos de pequeno e médio portes. Com as mudanças climáticas potencializando o El Niño, chuvas torrenciais estão tornando o Rio Grande do Sul num rio grande do sul, ou seja, o maior rio do estado. Este rio se avolumou em setembro de 2023 e se superou em fins de abril e princípio de maio de 2024. Em 2023, as chuvas torrenciais foram atribuídas ao fenômeno do El Niño. Em 2024, o responsável é uma combinação de fenômenos meteorológicos.
Não importa muito se as chuvas derivam dos últimos suspiros do El Niño ou de outro fenômeno meteorológico. Não se pode mais pensar os fenômenos climáticos divorciados das mudanças climáticas de atividades praticadas pela economia de mercado na Terra. Os gases gerados por essas atividades se acumulam e se espessam na atmosfera, acumulando calor e impedindo sua saída. O planeta se
aquece progressivamente. O ano de 2023 foi o mais quente desde 1850, quando começaram os registros meteorológicos mundiais.
O observatório Copernicus, da União Europeia, alerta que 2023 foi o ano mais quente desde a última fase interglacial, há 120 mil anos. Então, podemos dizer, provisoriamente, que 2023 foi o ano mais quente em 120 mil anos. É uma informação curiosa que não importa muito. Imaginemos o velho sapo das
nossas ilustrações numa panela com água que esquenta progressivamente sobre um bico de gás aceso. Quando o calor começar a incomodá-lo e ameaçar a sua vida, nós o consolaremos dizendo que já houve temperaturas mais elevadas em outro tempo e lugar.
A humanidade já existia durante a última fase interglacial, mas era muito reduzida e distribuída em grupos que viviam da coleta, da pesca e da caça. A América e a Oceania ainda não haviam sido colonizadas por humanos. As altas temperaturas devem ter causado incômodos, mas não como na atualidade. Houve momentos mais quentes enfrentados pela humanidade e antes que ela se constituísse.
Mas a Terra não era habitada por oito bilhões de pessoas. Não havia grandes cidades. Não havia encostas e margens de rios ocupadas por pessoas de baixa renda. Não havia grandes empresas poluidoras. Não havia a retirada de gases, líquidos e sólidos das profundezas da terra para serem queimados na superfície e lançados na atmosfera como fumaça. Não havia um sistema econômico que dessacralizou a natureza e a transformou em objeto de exploração. De animada, a natureza foi transformada em coisa capaz de fornecer matéria e energia, além de absorver dejetos do processo produtivo em caráter ilimitado.

As temperaturas progressivamente mais elevadas desde 1850 devem ser entendidas na sua dimensão qualitativa. Não apenas no seu aspecto quantitativo. Nunca antes na Terra as temperaturas foram provocadas pela ação coletiva de uma espécie: a espécie humana. E a Terra reage. Ela não está se vingando da humanidade. Ela apenas se manifesta como um grande organismo. As chuvas torrenciais que transformaram o Rio Grande do Sul no rio grande do sul; a seca que afetou o mesmo estado durante o último episódio de La Niña; os incêndios nos biomas Pantanal e Cerrado; a seca na Amazônia; o progressivo ressecamento da Caatinga; os furacões e tornados do hemisfério norte são manifestações do novo momento da Terra.
Criamos uma civilização adaptada a um tipo de clima mundial. Essa civilização está mudando o clima em que floresceu. As temperaturas dos oceanos se elevam, as geleiras eternas não são mais eternas, o nível do mar sobe. O calor e o frio aumentam. As chuvas, os ventos e as estiagens se tornam mais severas. A
humanidade está se debatendo e sofrendo. Sobretudo a parte mais pobre. Não sendo possível voltar rapidamente às temperaturas de 1850, cabe adaptar nossa civilização ao chamado novo normal climático. Mas os governos não estão conseguindo ou não estão acreditando nos novos e sombrios tempos. Diante do que acontece no Rio Grande do Sul – o mais intenso e extenso desastre climático – os governantes estão perplexos. Não sabe o que fazer e fazem o de sempre: socorrem as pessoas, fazem
sobrevoos, apelam para a caridade pública, falam em reconstruir o que foi destruído nos moldes anteriores até que novo episódio destrua tudo novamente. Creio mesmo não haver mais tempo para mudar diante das cenas de desastres que nos são mostradas.

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