Arthur Soffiati - O manguezal do rio Paraíba do Sul (final)
* Arthur Soffiati - Atualizado em 20/09/2023 08:45
Não contamos com documentação suficiente para avaliarmos a extensão, a biodiversidade e a complexidade do manguezal do rio Paraíba do Sul nos séculos XVI, XVII e XVIII, até mesmo porque esse ecossistema raramente merecia registro. Além de moluscos, crustáceos e peixes, supõe-se que o manguezal do Paraíba do Sul, por sua pujança, fornecia casca e madeira para curtumes, lenha (para ferroviais, principalmente), mourões e material de construção.
Na segunda metade do século XIX, escrevendo como testemunha ocular, Fernando José Martins informa que “A ilha do Lima, formada desde remotas eras dos chamados logradouros das ter-ras, depois dadas ao capitão-mor Antonio Teixeira Nunes, estende-se desde o riacho — Gargaú — até o pontal do norte da barra; o terreno, apesar de alagadiço e cortado por estreitos desaguadouros que transbordam com as águas das marés de lua, conserva excelentes pastarias; nestes riachos ou estreitas valas naturais encontra-se copiosa vegetação de mangue preto e vermelho, cuja casca e com especialidade a folha, serve de grande utilidade aos curtidores. Um francês, ali estabelecido ultimamente, nos asseverou haver tirado grandes vantagens dessas drogas para sua fábrica de curtumes, e que poucas havia que igualassem para esse mister à casca do mangue vermelho. Para proibir o corte e destruição dessas árvores, atendendo a sua utilidade, já o conde de Resende, vice-rei do estado, ordenou em várias portarias à câmara que providenciasse a sua conservação, cominando penas aos que as cortassem para lenha”. (MARTINS, Fernando José. “História do descobrimento e povoação da cidade de S. João da Barra e dos Campos dos Goitacazes, antiga Capitania da Paraíba do Sul”. Rio de Janeiro: Tipografia de Quirino & irmão, 1868).
O depoimento de Fernando José Martins, o mais antigo historiador regional, mostra que o manguezal e sua área já eram explorados de forma semelhante à atual. A descrição da ilha do Lima, a maior do delta, é precisa. Suas terras, constituídas por aluviões transportadas pelo rio, formam substrato mais firme que o ordinário dos manguezais para a criação de gado. Aliás, quase toda a área de manguezal apresenta teor acentuado de argila. Em outros manguezais, não haveria tanta facilidade para a implantação de pastagens. Mostra também a prática de um extrativismo vegetal para curtição com cascas e folhas de mangue vermelho, espécie rica em tanino. Refere-se ainda às medidas tomadas pelo conde de Resende proibindo o corte de mangue para lenha, com o fito de favorecer os curtumes. As portarias enviadas pelo conde ao Senado da Câmara de São João da Barra a que refere Martins não foram encontradas. Acima de tudo, Martins fala na abundância da vegetação do manguezal, ainda existente, não obstante todas as intervenções antrópicas.
Há um hiato entre Fernando José Martins e os anos de 1970, quando o manguezal do rio Paraíba do Sul passou a ser visto com outros olhos por pesquisadores, como aconteceu com todos os manguezais do Brasil. Ao mesmo tempo em que se fala de proteção desse ecossistema, enfatizando-se sua capacidade de armazenar carbono e contribuir na redução do efeito-estufa, deve-se avaliar os problemas que afetam o manguezal do Paraíba do Sul.
A primeira e mais agressiva intervenção humana decorre da atividade extrativista de árvores de mangue para energia, material de construção, cercas e até tutores no cultivo de maracujá. A segunda advém da invasão da pecuária em áreas do ecossistema.
Um dos maiores problemas a afligir o manguezal do delta do rio Paraíba do Sul é a urbanização das localidades de Gargaú e Atafona. A primeira avança com voracidade sobre a parte maior do manguezal, que ficou no município de São Francisco de Itabapoana. Há pequenos abatedouros clandestinos e frigoríficos que lançam seus efluentes no canal. O esgoto e o lixo domésticos completam o quadro dos poluentes a causar impactos ao ecossistema.
O Departamento Nacional de Obras e Saneamento deixou sua marca no canal de Gargaú. O órgão federal dragou o córrego e depositou o material retirado em sua margem direita, formando uma barragem que cria embaraços ao regime hídrico do manguezal: está comprometida a circulação de água doce do rio e o fluxo das marés, afetando flora e fauna.
O extrativismo animal sempre foi o sustentáculo de pessoas de baixa renda que habitam o entorno do manguezal e até de coletores que provêm de outros lugares. Tradicionalmente, esta prática era efetuada por meios rudimentares e ecologicamente sustentáveis: o catador introduz o braço na toca do animal e o arranca dela, devolvendo ao ambiente os exemplares de fêmeas. Os caranguejos aratu (“Goniopsis cruentata”) e guaiamum (“Cardisoma guanhumi”) passaram a ser procurados para fins comerciais mais recentemente. O extrativismo animal no manguezal do Paraíba do Sul era uma atividade praticada por mulheres. O extrativismo animal sofreu transformações significativas nos últimos cinquenta anos, seja por empobrecimento do ecossistema resultante de intervenções antrópicas perturbadoras e degradadoras, seja por uma demanda maior devido à sua inserção mais efetiva numa economia de mercado. Normalmente, a captura do caranguejo uçá alimentava uma economia de subsistência e uma economia localizada nas franjas de um pequeno mercado. A primeira mudança merecedora de registro foi a adoção progressiva de pequenas redes colocadas nas tocas do caranguejo, permitindo uma captura mais fácil. Mais recentemente, as redes passaram a ser interligadas em forma de cordão disposto sobre uma sequência de tocas, alargadas sobre suas bocas e fixadas com varetas para não fecharem.
Com a criação do município de São Francisco de Itabapoana, desmembrado de São João da Barra, este segundo ficou apenas com manchas de manguezal em três ilhas do delta. Trata-se de um trecho da costa que está passando por mudanças estruturais profundas, com grande movimentação e redistribuição de sedimentos que causam alterações constantes nas margens e nas ilhas e na foz. A redução da vazão do rio e a elevação do nível mar já vedaram o braço de Atafona e ligaram a ilha da Convivência ao continente.
A ilha da Convivência se tornou famosa pela comunidade que a habitou no passado. Lá existia o casamento por sequestro da noiva pelo noivo. Ao lado, a ilha do Pessanha foi palco do romance “Mangue”, de Osório Peixoto Silva. Poucos manguezais ambientaram ficção e inspiraram poesia. O mais famoso manguezal do Brasil, nesse sentido, é o do rio Capibaribe. O romance “Homens e caranguejos”, de Josué de Castro, é ambientado nele. Vários poemas de João Cabral de Melo Neto também foram inspirados naquele manguezal. O movimento cultural Manguebeat tem por fundo o manguezal de Recife. E vários pintores também o retrataram.
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