Arthur Soffiati - A voz dos rios
Um rio pode permitir a navegação de transatlânticos, como o Amazonas. Mas também pode se reduzir a um filete de água, como as ribeiras da ilha da Madeira. São vales úmidos que se tornam torrenciais com chuvas para, logo em seguida, exibirem seus leitos pedregosos. Um rio não tem nenhuma obrigação com embarcações. Rios não existem para a prática de navegação em suas águas, mas podem permitir que sejam utilizados como caminhos aquáticos. Em todos os continentes, seus habitantes humanos nativos construíam embarcações para cruzarem rios e mares. Sérgio Buarque de Holanda explicou que, no início da colonização europeia da América, as caravelas não se prestavam para singrarem os pequenos rios. O conquistador precisou recorrer à tecnologia local para navegar neles.
O ocidente inventou grandes embarcações para cruzarem os mares. Com a Revolução Industrial, elas se tornaram mais velozes pelo uso de motores a vapor. Os rios foram ocidentalizados. Ganharam pontes, sofreram desvios, foram barrados, tiveram suas margens tosadas. Seus leitos passaram a acumular sedimentos transportados das margens desmatadas. Suas águas foram progressivamente contaminadas por esgoto líquido e sólido. Sua fauna foi se empobrecendo e derrotada por animais estranhos. Gilberto Freyre conta, no seu livro “Nordeste”, como os belos rios do passado se transformaram em valas de esgoto.
Visitei o estuário do rio Tejo, de onde saíram as caravelas que conquistaram o mundo. Seu semblante era bom, mas escondia doenças que corrompem todo o seu corpo. Conheci o Reno e o Meno. Passei alguns dias na margem esquerda do segundo. Ele tem 524 quilômetros de extensão. O rio Paraíba do Sul tem duas vezes o seu comprimento. Mas fiquei impressionado ao ver um enorme e silencioso navio navegando suas águas.
O Reno foi comparado ao Paraíba do Sul por naturalistas europeus no século XIX. A diferença, segundo eles, é que o Paraíba do Sul apresentava mais pujança e beleza, com suas águas límpidas e as florestas de suas margens. O Reno tem 1230 km de extensão, regulado com o Paraíba do Sul. A diferença entre os dois, hoje, inverteu-se. Embora domesticados, os rios da bacia do Reno são limpos e navegáveis. Em suas margens, instalaram-se núcleos urbanos antigos. Existem caminhos para pedestres, ciclovias, ferroviais e rodovias. Muros ao longo deles contêm o processo erosivo.
No entanto, a bacia do Reno, nos últimos dois anos, vem apresentando déficit hídrico. A navegação está comprometida na principal via fluvial da Europa Ocidental, o mesmo acontecendo com seus afluentes. Deslocando-se mais para leste, encontra-se outro grande rio. Trata-se do Danúbio, via fluvial que atende a vários países da Europa Oriental. Seu nível baixou drasticamente nos últimos dois anos. Navios naufragados na Segunda Guerra Mundial apareceram com a seca, assim como algumas construções do passado.
Rumando em direção a leste, outro eixo navegável de vital importância é o Yangtzé. Com 6.300 km de extensão, é um dos maiores rios do mundo. Seu volume e sua profundidade permitem navegação confortável. Contudo, como seus congêneres no mundo todo, ele se tornou raso em vários pontos nos últimos dois anos. A massa da água não está atendendo devidamente às hidrelétricas. A produção de energia caiu, levando a China ao aumento no consumo de carvão mineral e, consequentemente, ao aumento na geração de gás carbônico, um dos principais gases causadores do efeito-estufa.
Atravessando todo o oceano Pacífico, chegamos à América do Norte. Também drenada por alguns grandes rios do mundo. O mais importante para a navegação é, sem dúvida, o Mississipi, tantas vezes retratado no cinema. A navegação nele é de fundamental importância para o escoamento de grãos, carvão, petróleo e gás natural. Vale dizer, para o transporte de recursos arrancados das entranhas da terra e da agricultura, dois grandes responsáveis por gases causadores de mudanças climáticas. Tais mudanças são responsáveis pelo volume de água na superfície terrestre, com abundância ou escassez de chuvas. Estima-se que, em 2022, as perdas econômicas decorrentes de dificuldades de navegação fluvial no Mississipi montaram a cerca de 20 bilhões de dólares.
Por fim, o canal do Panamá, que foi aberto no istmo da América Central para ligar os oceanos Atlântico e Pacífico para fins de navegação, assim como o canal de Suez, teve o mesmo objetivo com relação aos oceanos Índico e Atlântico. O canal do Panamá conta com eclusas para compensar a diferença de nível entre os dois oceanos. Alguns lagos marginais ao canal concorrem para a atividade comercial. Contudo, a irregularidade de chuvas está prejudicando a atividade naval, que responde por 5% do comércio marítimo mundial.
O mesmo vem acontecendo com outros rios. No empenho de promover o crescimento econômico, o sistema global funciona como um bumerangue: inviabiliza as próprias bases do sistema. Esperando chuvas copiosas provocadas pelo El Niño, os rios podem ganhar grande vazão e também provocar prejuízos à navegação, além de destruição.