STF, "golpe híbrido", o paradoxo da tolerância e a democracia - uma conversa com Dr. Carlos Alexandre
25/08/2021 11:15 - Atualizado em 25/08/2021 11:20
A democracia está em risco. Talvez o momento de ser alarmista com essa afirmação já tenha passado, e estejamos em um momento claro de ruptura democrática. A Constituição brasileira de 1988 é elogiada por seu caráter garantista e progressista, corrigindo dívidas históricas e conferindo o máximo de equidade possível. Mas, não é perfeita. Permite conflitos constantes nas relações entre os poderes, que envolvem, inclusive, sua instituição garantidora — o Supremo Tribunal Federal (STF).
A democracia não é mantida pelo simples funcionamento das instituições — elas podem existir e serem reconhecidas em suas determinações, mas estarem omissas em obrigações constitucionais. Omissões que podem afetar diretamente a democracia, como no caso atual da Procuradoria-Geral da República. A PGR não está subordinada a nenhum dos três poderes. Como órgão máximo do Ministério Público, tem a função constitucional de fiscalizá-los. Porém, permanece inerte diante de evidentes crimes de responsabilidade do presidente da República e de ataques permanentes à democracia e à harmonia entre os poderes.
Crise institucional se agrava
No sistema acusatório brasileiro, as funções de acusar, julgar e defender devem ser exercidas em mãos distintas. Em 2019, o STF determinou a abertura do ‘inquérito das fake news’, por decisão do então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli. O inquérito objetiva investigar notícias fraudulentas, ofensas e ameaças ao próprio Supremo. No início deste mês, o ministro Alexandre de Moraes determinou a inclusão do presidente Jair Bolsonaro como investigado no inquérito.
Em retaliação, Bolsonaro apresentou, na última sexta-feira (20), ao Senado Federal um pedido de impeachment contra Moraes, sob o argumento de que ele estaria extrapolando os limites da Constituição. No mesmo dia, o STF emitiu uma nota de repúdio ao pedido feito pelo presidente, reforçando que o inquérito já havia sido chancelado pelo plenário da Corte.
"O Estado Democrático de Direito não tolera que um magistrado seja acusado por suas decisões, uma vez que devem ser questionadas nas vias recursais próprias, obedecido o devido processo legal" — diz a nota.
Golpe, autogolpe ou golpe híbrido – democracia ameaçada
O sociólogo, cientista político Sérgio Abranches, afirma que “há um golpe em curso no país”. E Bolsonaro parece coletar pretextos para que o país entre uma escalada que poderia chegar à desordem civil ou convulsão social, assim justificar um golpe (ou autogolpe).
Abranches vê a possibilidade de um “golpe híbrido”, onde o bolsonarismo tentasse um modelo misto, na forma clássica, com tanques nas ruas, e conjuntamente com o desmonte interno das instituições democráticas. Nesse modelo, o candidato a ditador — ou liderança autoritária — se vale das regras da própria democracia para derrubá-la.
Embora as instituições brasileiras estejam em funcionamento, se mostram cooptadas por um sistema ineficiente para conter arroubos autoritários. Principalmente por omissões. Além da PGR, o Congresso Nacional permanece refém de fisiologismo. O presidente da Câmara, Arthur Lira, tem em sua gaveta mais de 100 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, alicerçados em um leque de acusações de crimes de reponsabilidade. Como essas omissões são supridas? De quem é a responsabilidade de amparar a democracia quando ela está sem suas sustentações?
 Invasão do Capitólio americano em 6 de janeiro deste ano, por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, contestando a vitória de Joe Biden nas eleições. Quatro pessoas foram mortas e mais de 50 foram presas
Invasão do Capitólio americano em 6 de janeiro deste ano, por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, contestando a vitória de Joe Biden nas eleições. Quatro pessoas foram mortas e mais de 50 foram presas / REUTERS
 
O Paradoxo da Tolerância e o STF – uma conversa com Dr. Carlos Alexandre
“A tolerância ilimitada deve levar ao desaparecimento da tolerância. Se ampliarmos a tolerância mesmo para aqueles que são intolerantes, e se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque do intolerante, então o tolerante será destruído e a tolerância com eles”. Essa é uma citação de rodapé do livro ‘A Sociedade Aberta e seus Inimigos’, do filósofo Karl Popper, publicado em 1945, onde traz o conceito do “Paradoxo da Tolerância”.
Karl Raimund Popper foi um filósofo e professor austro-britânico. Amplamente considerado um dos maiores filósofos da ciência do século XX
Karl Raimund Popper foi um filósofo e professor austro-britânico. Amplamente considerado um dos maiores filósofos da ciência do século XX / Reprodução
Diante da imobilidade das instituições democráticas e de suas possíveis omissões criminosas, a quem cabe a defesa, a última trincheira, contra atos antidemocráticos? Popper, na mesma obra, ressalta que não se deve suprimir a “expressão de filosofias intolerantes”, defendendo o princípio da liberdade de expressão, que também é norteador do sistema democrático. Mas, condiciona à existência da liberdade quando é possível “combatê-las com argumentos racionais”.
Estaria o STF agindo como o último poder? A situação de excepcionalidade que vivemos no país justifica que a Suprema Corte extrapole suas atribuições? O interesse do Supremo é estritamente a defesa da democracia? Qual o futuro da Corte em um cenário sem Bolsonaro no poder?
Na tentativa de responder esses e outros questionamentos, converso com o coordenador do curso de Direito do Isecensa, professor da Uerj e ex-assessor de ministro do STF, Carlos Alexandre de Azevedo Campos.
Edmundo Si
queira
– Professor, diante das omissões institucionais da PGR e do MPF, o STF tem agido. Além do inquérito das fake news, a Suprema Corte impediu diversos arroubou autoritários do presidente e tem a palavra final em assuntos controversos que tem o poder de mudar o rumo da democracia brasileira. Hoje o STF está em um dilema parecido com o vivido — pelo menos em seu início — pela força tarefa da Lava Jato, onde a justificativa higienista permitia manipulações do texto constitucional?
Carlos Alexandre - Não vejo paralelo entre o STF de hoje e a Lava Jato. Não vejo o STF manipular o texto constitucional, não o vejo suprimir garantias constitucionais, nem o devido processo legal. Simplesmente, existe um grande esquema, comandado pelo presidente e seus filhos, com participação de inúmeros apoiadores, muitos desses parlamentares, voltado a instaurar um caos institucional, buscando retirar toda a credibilidade das instituições democráticas, tudo para espalhar a absurda sensação que a paz e a prosperidade só chegarão com o governo autoritário de Bolsonaro. Nesse cenário, como guardião da Constituição, cabe ao STF agir. Se assim não fosse, estaria somando a sua inércia ao do PGR.
Edmundo Siqueira – Embora o STF seja acusado constantemente de atuar por interesses políticos e de extrapolarem suas atribuições, o inquérito das fake news apura de fato ilegalidades e afrontas diretas à democracia. Como nas ações e vídeos do presidente do PTB, Roberto Jefferson, que são demonstrações claras de extrapolação de limites da liberdade de expressão. Sua prisão, decretada pelo STF, cessa ameaças e incitações à violência constantes. Caso o Supremo agisse com purismo, hermenêutica e estritamente jurisprudencial, talvez não determinasse a prisão. Nesse caso, e em outros análogos, o Supremo age como acusador e julgador? Há conflito?
"Simplesmente, existe um grande esquema, comandado pelo presidente e seus filhos, com participação de inúmeros apoiadores, muitos desses parlamentares, voltado a instaurar um caos institucional, buscando retirar toda a credibilidade das instituições democráticas, tudo para espalhar a absurda sensação que a paz e a prosperidade só chegarão com o governo autoritário de Bolsonaro. Nesse cenário, como guardião da Constituição, cabe ao STF agir. Se assim não fosse, estaria somando a sua inércia ao do PGR"
Carlos Alexandre - Veja: quando o STF condenou no Mensalão, o PT acusou o STF de agir politicamente; a mesma coisa ocorreu quando o STF não barrou o impeachment da Dilma; hoje, o STF defende a Constituição e a democracia contra os absurdos autoritários de Bolsonaro, e são seus seguidores que não só acusam o STF de político, mas pedem seu fechamento, sua extinção, o enforcamento de seus ministros... Sempre haverá um perdedor buscando defesa por meio do ataque à figura de seu julgador.
Por mais que possa parecer que o STF age de ofício nesses casos, existe um inquérito instaurado que foi ratificado pelo PGR, as prisões são requeridas pela Polícia Federal, e o PGR é ouvido antes do deferimento. Por outro lado, o inquérito não versa apenas ameaças ao STF, mas a todas as instituições democráticas que se oponham ao governo bolsonarista. Portanto, não vejo conflito. Comparado ao Executivo e Legislativo, o Judiciário é o único poder que pode atuar sem se preocupar com o apoio popular; a sua independência constitucional foi forjada justamente para que pudesse atuar sem essa preocupação, e assim o STF tem atuado. Não vejo arroubos interpretativos, e sim abusos do presidente e de seus asseclas que estão sendo combatidos com participação do PGR, como determina a Constituição e as leis.
Edmundo Siqueira – Por décadas os Estados Unidos discutiram a 1º emenda que, entre outras garantias, trata da liberdade de expressão. Em discussões doutrinárias, os limites dessa liberdade na democracia americana são impostos em casos extremos. Stuart Mill, filósofo britânico que viveu no século XIX, defendeu a livre expressão das ideias, mesmo sendo elas falsas, sendo cerceado o direito de opinião apenas quando cause dano injusto. Em 2018, o general Villas Bôas, então comandante do exército, publicou no Twitter uma ameaça que dizia ao STF como aquela corte deveria votar para impedir a então candidatura de Lula. Na manhã desta segunda-feira (23), foi afastado o coronel da Polícia Militar de São Paulo, Aleksander Lacerda, que fez publicações em suas redes sociais para convocar militantes às ruas em apoio ao presidente Jair Messias Bolsonaro e atacar ministros do STF. Cabe à corte criar mecanismos de autodefesa? A ela cabe definir os limites da liberdade de expressão?
Carlos Alexandre - A liberdade de expressão é um direito fundamental autoaplicável, mais importante instrumental da própria democracia, portanto, por certo que cabe ao STF definir a sua extensão. O Tribunal já o fez garantindo a sua máxima efetividade em diversas vezes. Porém, em situações nebulosas, há sempre a dúvida se determinado ato é uma manifestação de opinião, ou um abuso do direito como ameaça à própria democracia.
"Comparado ao Executivo e Legislativo, o Judiciário é o único poder que pode atuar sem se preocupar com o apoio popular; a sua independência constitucional foi forjada justamente para que pudesse atuar sem essa preocupação, e assim o STF tem atuado".
Temos assistido manifestações de personagens políticos incitando violência ao devido processo democrático, ameaças às instituições, principalmente ao STF como forma de inibir a independência da Corte. Ora, não se pode tolerar esse tipo de manifestação quando o seu fim último é justamente inibir o livre pensamento e a independência judicial. A democracia deve ser protegida contra os abusos de direitos próprios da democracia. Seria absurdo o STF calar a voz de seus críticos. Mas muitos dos discursos que temos visto não são de críticas, mas de ameaças, e isso não deve ser tolerado.
Edmundo Siqueira – Em recente ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), inicia pelo presidente Bolsonaro, foi alegado que “o poder de polícia judiciária previsto no Artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal tem despertado uma série de perplexidades a propósito da legitimidade da atuação do Ministro designado como Instrutor/Relator”. A Constituição define que cabe ao Ministério Público monopólio da ação penal, inclusive para o oferecimento de denúncia. O INQ nº 4781 (inquérito das fake news) fere esse princípio ou o Regimento da Corte?
Carlos Alexandre - Por certo que o STF realizou uma interpretação bastante extensiva do que se considera “na sede ou na dependência do Tribunal” de que trata o art. 43 do RISTF, para efeito de legitimar a abertura do inquérito pelo próprio Presidente do STF. É legítima a abertura de inquérito pelo próprio STF, se a infração ocorrer na sede ou nas dependências do Tribunal. Ocorre que, como ocorre em outras áreas do Direito, no mundo digital essa noção de espaço é líquida, incerta, não palpável. É um desafio que todos os ramos do Direito vêm enfrentando. É proporcional ao alcance que a mídia digital possui. Não existe uma “sede” fixa das fake News do mundo digital; as ameaças via digital ocorrem em todos os lugares ao mesmo tempo. É uma interpretação ousada, porém, como já dito, tem sido ratificada pelo próprio PGR, que inclusive adiciona fatos novos e pede novas investigações.
Edmundo Siqueira – Fazendo um esforço imaginativo, suponhamos que Bolsonaro seja derrotado nas próximas eleições e a relação entre poderes aconteça com preceitos democráticos e de forma responsável. Qual será o papel de um Supremo que foi tão requisitado? É saudável que ministros deem entrevistas, antecipem votos, e atuem como um poder moderador? É possível pensarmos em um sistema judiciário previsível, estável, com tecido jurisprudencial firme, em futuro próximo?
Carlos Alexandre - Sou radicalmente contra ministros relatores e vogais antecipando votos e opiniões na imprensa. Penso que apenas o Presidente da Corte deveria falar à imprensa, e não sobre processos, e sim na defesa institucional do Tribunal. Contudo, um Tribunal com tanto acesso à sua jurisdição, com tantos instrumentos de decisão, é natural que chegássemos a um excesso de judicialização da política e das crises políticas. Mas o STF é demandado, e isso não começou com Bolsonaro.
Penso sempre que uma Corte com tal estrutura de participação se alinha, na maioria das vezes, à temperatura política. Não há estabilidade institucional ou política com Bolsonaro. O seu governo é um fracasso sem precedentes em todas as áreas que se pense, e ele vai insistir até o fim com a ruptura institucional e democrática para dar o seu golpe ou autogolpe. Assim, o STF vai continuar nessa “guerra” queira o presidente ou não. O Congresso também está numa disputa silenciosa com o presidente, dando de 7 a 1 nele. Contudo, uma vez derrotado Bolsonaro no voto e instaurado um governo mais estável e de diálogo, acho que o STF voltará ao seu papel primário de resolver as grandes questões constitucionais essenciais. Assim desejo.
 
 

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]