Ethmar Filho: Quase me basta
Ethmar Filho 09/07/2020 23:01 - Atualizado em 24/07/2020 18:39
“Salvatore Di Vita é um cineasta bem-sucedido que vive em Roma. Um dia ele recebe um telefonema de sua mãe avisando que Alfredo está morto. A menção deste nome traz lembranças de sua infância e, principalmente, do Cinema Paradiso, para onde Salvatore, então chamado de Totó, fugia sempre que podia, depois que terminava a missa (ele era coroinha). No começo, ele costumava espreitar as projeções através das cortinas do cinema, que o padre via primeiro para censurar as imagens que possuíam beijos, e fazia companhia a Alfredo, o projecionista. Foi ali que Totó aprendeu a amar o cinema.” (Nuovo Cinema Paradiso” — fonte Wikipédia)
Foi ali que, como ele, eu também aprendi a amar o cinema e as trilhas sonoras compostas por maestros geniais como Ennio Morricone, que desceu do pódio, semana passada, aos 91 anos de cinema e música. Como se não bastasse Morricone interpretar o filme por intermédio de sua música, Giuseppe Tornatore, o diretor, consegue interpretar a música de Morricone através de seu filme, numa espécie de simbiose de entrega que quase revela um segredo que guardamos a sete artes: existem músicas feitas para os filmes, e filmes feitos para as músicas.
Totó, aquele menino franzino e parecido com todos nós, se torna, no roteiro, um cineasta famoso na Itália, e, se for como eu acho, no mundo inteiro, porque o Totó é o próprio Tornatore por trás do projetor. Totó é o próprio Ennio Morricone por trás da orquestra. Totó sou eu por trás da minha infância... que tantas vezes assisti aos filmes italianos também por trás do buraco das lentes dos projetores, no Cinema Plaza, Cinelândia, Rio de Janeiro, edifício onde morava minha Tia Elza. E, como ele, tantas vezes dormi com a sineta de coroinha nas mãos enquanto o padre da Paróquia do Andaraí celebrava aquela missa de ninar. Sobre Tornatore, quase tudo já foi dito e celebrado como um dos melhores mas, sobre Morricone sempre vão faltar palavras para descrever seu talento e, principalmente, seu entendimento a respeito do cinema italiano que não se cansa de me pegar pelos colarinhos e me sacudir para a vida. Que sempre será como a ficção que tem a obrigação de fazer sentido enquanto que a realidade não faz a menor questão, nunca, em 100% dos nossos sustos.
O Alfredo é o pai que Totó perdeu na guerra e que todos gostaríamos de ganhar. Quando o menino já adolescente vai embora de “Giancaldo”, sua cidade natal, no interior da Sicília, Alfredo lhe diz ao pé do ouvido: "...nunca volte para cá. Esqueça tudo o que viveu aqui, todos a quem conheceu, esqueça-se de mim e, se voltar, não me procure para que eu não te veja fora de foco ou, pior, como um homem comum... você é especial". Quando Alfredo fica cego pelo incêndio que destruiu o antigo Cinema Paradiso, Totó não só salva a sua vida, arrastando-o pelas pernas, como toma o seu lugar como projecionista no “Nuovo Cinema Paradiso”. E o cinema, que não é só uma tela grande, um lugar escuro e um balde de pipocas, mas, antes de tudo, um túnel sem saída, ainda consegue nos tirar da poltrona quando estamos sentados ali, juntos, sem ter pra onde ir, testemunhando a reação uns dos outros. Trinta anos depois, “Cinema Paradiso”, ainda atual, nos coloca dentro de Giancaldo e da Sicília, na maior declaração de amor que a sétima arte já recebeu. Fernando Pessoa não cansa de me surpreender: “A arte existe porque a vida não basta”. A música de Ennio Morricone quase me basta.

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