Sérgio Arruda de Moura: Literatura e engajamento
Sérgio Arruda de Moura 04/07/2020 13:43 - Atualizado em 24/07/2020 18:36
A propósito da confissão ou declaração pública da romancista e cronista Lya Luft sobre ter votado em quem votou na última eleição, entendeu-se apenas uma coisa: falta grave do escritor em responder politicamente por sua obra. O escritor é uma figura – um agente social – que procura zelar pela sua participação no processo político, que constrói consciência de classe em compasso com a obra que cria. Se sua obra nada diz, então ele está quites com esse aspecto. Pareceria ser o caso de Lya Luft?
Esse arrependimento – tardio, bem tardio – é que não pegou muito bem. O critério da liberdade de escolha neste ou naquele candidato também foi para o espaço. Como escritora (e antena da raça) faltou-lhe discernimento e sobrou má vontade de pensar, de se engajar.
Como pode um escritor ou um artista revolucionário aderir a um candidato em campanha difamatória, expressando aos quatro ventos as mais estapafúrdias opiniões e deixando atrás de si um rastro de racismo, homofobia, misoginia, de desprezo completo pelos direitos humanos, pelo decoro, de forma tão cínica?
Não foi perdoada. É como se tivesse anulado a sua obra. Era tudo falso. Seus personagens são iguais à escritora, fariam o mesmo que ela se encarnados e reais fossem.
O fato estético não é desgarrado de uma vida real, a vida do seu criador, que se alimenta do campo onde está inserido. Onde então estaria o senso crítico político, mesmo pra consumo, que acompanha um escritor? O escritor, como o artista, é o sal da terra. É preciso validar sua obra a cada dia, atestando a humanidade que ela proclama, a adesão inalienável à vida na firme oposição a tudo que a ameaça.
É preciso responder cotidianamente pela sua obra.
A literatura não é apanágio de um mundo harmônico e em equilíbrio, mas de um mundo assombrado, ameaçado. E é sobre esse mundo que a obra de Lya Luft fala – pelo menos do pouco que li e procurei conhecer dela, autora de três dezenas de livros. E o que ela fez com sua “coragem” de declarar foi isso. Se a literatura é ficção (da mesma raiz de fingir), então foi isso que rolou desde sempre.
Ela atesta: “Minha literatura sempre nasceu do conflito, da dificuldade, do isolamento”. E é verdade. Não há sofrimento nem crueza de fato nos seus romances, diria um ou outro conhecedor de sua obra. Ela localiza seus personagens no coração da classe média, vivendo seus dramas sob a segurança de um teto sobre suas cabeças. Cronista na revista Veja, ela dá os seus “pitacos” sobre costumes, cotidiano, sentimentos... e algo muito vago e generalizante sobre política. Mas crônica é assim mesmo, dirão muitos. Só sobreviverá ao tempo se for para atestar o mundo interior vasculhado quase psicanaliticamente pelas suas linhas, que sugerem um leve descontentamento – espécie de reader’s digest (leitura digestiva), para a classe que a consome. Dramas pessoais e de família, batalhas interiores contra um inconsciente perturbado, conflitos sentimentais, tudo isso está presente em muitas obras já clássicas, ambientadas em lugares sofisticados, alheios às reviravoltas do mundo. Há quem ponha isso em causa, classificando certas obras de burguesa, alienada. Mas isso não pode ser critério final para a análise de sua qualidade, que reside no manejo da linguagem.
A obra de Lya – li seis de seus romances para avaliar uma tese de doutorado há uns 15 anos – é difusa, numerosa, de forma que não fica muito bem retida na memória nem a urdidura da trama nem a temática. Não sei a que se deve isso. Revendo tudo, passando tudo em causa, imagino o seguinte: a obra não gira em torno de temáticas tão somente, mas em personagens que a encarnam. Talvez esse fenômeno não se evidencie na obra de Lya Luft, daí o apagamento – na minha experiência de leitor –, sistemático. Não me recordo de nenhum grande personagem, prototípico, que tenha executado alguma façanha, que tenha se fixado na minha memória, tal como fizeram Emma Bovary, Anna Kariênina, Quincas Borba, Pedro Archanjo, Quixote, Hamlet, Gavroche, Étienne Lantier, Fabiano (personagens engajados no desvelamento de algum aspecto estritamente pró-humano, e não contra ele). Não sei a que se deve isso. Talvez pela insistência em um formato já fixado desde sempre esse fenômeno de apagamento ocorra na obra não só de Lya Luft, como de outros.
Por outro lado, outras obras se mantêm, seja pela força de personagens menos estereotipados, seja pela manutenção da crítica e da história em torno da obra.
Claro que é sempre frustrante pra mim ouvir de uma cabeça criadora e política uma confissão – vergonhosa, sim – como essa, que dia sim, dia não é feita nas redes, por arrependidos de decisões inglórias.
O engajamento do escritor, que é sempre político, é uma marca de sua arte. Diria que sem engajamento, não há criação. Mas alto lá, não pensem que se tratará de engajamento partidário, mas político. E esse engajamento é em favor de causas políticas em favor dos desfavorecidos – sim, a literatura, a boa literatura, é de esquerda.
Lya Luft não perde seu posto de grande prosadora, de vasculhadora de recônditos da alma humana, pela declaração infeliz. Mas também não vamos achar que foi um ato de coragem e desprendimento, típico apenas de um ou outro de seus personagens.

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