Folha Letras - Leituras em 2024: os antigos
*Arthur Soffiati - Atualizado em 02/04/2025 13:30
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Desde que me aposentei, tenho me dedicado mais à leitura de poesia e ficção. Não apenas de autores brasileiros, senão que também de autores de vários países do mundo, desde que suas obras sejam traduzidas para o português. Minha preferência tem recaído sobre autores que estão lançando seu primeiro livro ou no início de carreira. Um bom ou mau início deixa sempre uma incógnita: o escritor ou a escritora evoluirá na sua arte ou ficará marcando passo? Confesso que tenho me decepcionado com os estreantes e com os escritores já consagrados. Posso mencionar nomes, mas convém não fazê-lo.

Só sei que os jovens me fizeram retornar aos velhos, aos antigos. Assim, em 2024, retomei Machado de Assim, relendo um livro seu e lendo outros dois desconhecidos. Sinto o chão mais seguro. Parece também (não tenho certeza) que os professores de literatura se referem a Machado de Assis apenas com relação às obras finais de sua carreira, aquelas que o imortalizaram, deixando de lado os livros de sua fase romântica. Os que merecem mais atenção são “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”.

Ora, a obra de Machado de Assis foi pacientemente construída tijolo a tijolo. “Casa velha” é um grande romance, porém esquecido no fundo de uma gaveta. Os livros da fase romântica são ingênuos, mas superam os dos seus contemporâneos. E mostram os encantos e desencantos de um Rio de Janeiro que não existe mais. “Iaiá Garcia” (Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1988), um dos romances do escritor que li pela primeira vez, é ambientado em Santa Tereza e na rua dos Inválidos, principalmente. O bairro de Santa Tereza ainda guarda certo frescor. Quem visita a rua dos Inválidos atualmente não pode imaginar o dinamismo que ela apresentava no século XIX.

Iaiá Garcia aparece como criança amorosa e virtuosa. Torna-se mulher forte ainda adolescente. Apaixona-se por um homem maduro, que também começa a gostar dela, mas não se decide em declarar-se. Iaiá tomará a iniciativa numa das passagens mais apaixonantes do livro. E as ironias de Machado parecem insuperáveis. Um pretende à mão de Iaiá era o velho Procópio Dias, que “tinha dois credos. Era um deles o lucro (...) o segundo credo era o gozo.” A vida, nos livros românticos de Machado, era vivida sem muita reflexão a seu respeito. E a morte era encarada com muita naturalidade. A água com açúcar de Machado é temperada já com pitadas de realismo. A mulher é naturalmente maliciosa. E Machado tem sempre uma consideração de sabedoria a fazer sobre o que relata. Se os personagens não se dão conta dos seus atos, o narrador sempre os observa com atenção.

Reli Esaú de Jacó (Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1988), já da fase realista impiedosa de Machado. Irmãos gêmeos têm personalidade e temperamento completamente distintos e até opostos. Eles são filhos de um casal rico. O marido é medíocre. A mulher é inteligente e maliciosa. Embora católica, ela não hesita em consultar uma vidente no morro do Castelo. Frequenta-se a igreja católica, mas também a sessões espíritas. E as observações jocosas: “o tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto.”

E existe sempre uma mocinha rica e bonita. Os irmãos gêmeos disputam seu coração, mas, na flor da idade, ela morre. No fundo da trama, desponta a cidade do Rio de Janeiro. Machado a colocou no mapa mundial ao lado de Lisboa, Roma, Paris e Londres. Embora o foco do autor seja a carreira dos irmãos, desponta a figura ímpar do conselheiro Aires, solteirão longevo e arguto. Ele merecerá de Machado seu último romance. Embora tivesse amores na juventude, Aires “estava cansado de homens e de mulheres, de festas e de vigílias”.

É Aires que comenta com D. Perpétua após um jantar em Botafogo, numa antevisão precisa: “A enseada (de Botafogo) não difere de si. Talvez os homens venham algum dia atulhá-la de terra e de pedras para levantar casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corridas de cavalos. Tudo é possível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, barão, é que morreremos antes.”. Não chegamos a tanto, mas passamos perto.

Por fim, “Relíquias da casa velha” (Rio de Janeiro: Garnier, 1990), publicado em 1906, um ano após a morte de Carolina, esposa do escritor. O livro é aberto com o famoso poema dedicado a ela e considerado um dos maiores sonetos da literatura ocidental em língua portuguesa.

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro/Em que descansas dessa longa vida,/Aqui venho e virei, pobre querida,/Trazer-te o coração do companheiro.//Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro/Que, a despeito de toda humana lida,/Fez a nossa existência apetecida/E num recanto pôs um mundo inteiro.//Trago-te flores, - restos arrancados/Da terra que nos viu passar unidos/E ora mortos nos deixa e separados.//Que eu, se tenho nos olhos malferidos/Pensamentos de vida formulados,/São pensamentos idos e vividos.
O livro reúne contos famosos do autor, entre eles “Pai contra mãe”, um libelo contra a escravidão, além de críticas, o discurso lido na inauguração do Passeio Público e duas peças de teatro.

Deixando Machado com saudades, li também, um livro de Cornélio Pires. Trata-se de “As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho (O Queima-Campo)” (São Paulo: Imprensa Methodista, 1924). Em primeiro lugar, nunca havia lido nada dele. Em segundo lugar, consegui a primeira edição do livro, em brochura e cheiro de livro antigo. O autor se consagrou como um dos primeiros estudiosos da cultura caipira, ao lado de Amadeu Amaral. O português se misturou a outras línguas pelo mundo em sua expansão colonial e gerou dialetos e línguas crioulas. A fala caipira teve o estado de São Paulo como centro, mas se difundiu por uma área que certos autores estão denominando de Paulistânia. Não é só a língua – um misto de português e falares indígenas, sobretudo tupi –, mas também a economia, a organização social e a cultura. Já existem estudos sobre a culinária e a música caipira. Cornélio Pires também se dedicou a estudar a música, fazendo várias gravações com os métodos de que dispunha na sua época (1884-1958).

O livro que li reúne causos contados pelo caipira Joaquim Bentinho, personagem criado pelo autor com base nas histórias caipiras. Chama-se de queima-campo a pessoa que cria causos mentirosos de propósito, como o homem que teve o nariz amputado mas conseguiu implantá-lo novamente, só que com as narinas para cima. Ou o do galo que perdeu as duas pernas, também novamente implantadas, sendo uma com o pé para frente e outra para trás, impedindo que o animal saísse do lugar.
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De Graciliano Ramos, li os famosos relatórios do escritor quando foi prefeito de Palmeira dos Índios. “O prefeito escritor” (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2024) ganhou sua primeira edição quase um século depois de redigidos os relatórios. “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.”

Muitas outras críticas bem-humoradas são escritas, mostrando já o talento para escritor e a vocação de socialista de um dos maiores escritores brasileiros.

Em 1941, aos 18 anos de idade, Fernando Tavares Sabino lançou “Os grilos não cantam mais”, seu primeiro livro (Rio de Janeiro: Pongetti, 1941). Ele reúne contos. Li-o em sua primeira edição. O autor era atleta (praticava natação) e forte. Destoava do perfil de intelectual da época. Nos seus contos, ele mostra um mundo que já não existe mais. Escreve sobre o adolescente que fugiu de casa, de casos de padres, de lares de classe média, de festinhas familiares, de namoros, de cinemas e filmes antigos (chamadas fitas), da morte de idosos, de cães e do impacto causado pela difusão da geladeira e do telefone.

Creio que, de todos os jovens escritores mineiros, Mário simpatizou logo com o livro e escreveu para Sabino uma carta sugerindo que mudasse seu nome artístico: ou Fernando Sabino ou Tavares Sabino. Fernando Tavares Sabino era muito grande. O jovem autor passou a se assinar Fernando Sabino.
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Por fim, retornei a Danton Trevisan, lendo também a primeira edição de “Meu querido assassino” (Rio de Janeiro: Record, 1983). Todo livro de Trevisan traz relatos esperados e inesperados. Esse livro é também de contos, como quase todos. Mais uma vez, Trevisan escreve o mesmo livro, como disse M. Cavalcanti Proença. São as mesmas histórias contadas de forma diferente, ambientadas na sua querida e detestada Curitiba. Contos eróticos (beirando a pornografia), relatos da periferia, da miséria, dos relacionamentos amorosos com violência, das empregadinhas domésticas, da velhice, do cotidiano, enfim.
Trevisan morreu aos 99 anos, em dezembro de 2024, na sua solidão. Voltei a ele em sua homenagem.

*Escritor, professor, historiador e ambientalista

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