Folha Letras - Leituras de 2024: os brasileiros
Em passado recente, os jornais de circulação nacional costumavam perguntar a críticos literários que livros eles apontavam como os melhores do ano que se findava. Depois, o próprio jornal fazia essa escolha. Atualmente, a imprensa procura pessoas de áreas diversas, geralmente colunistas do próprio jornal, e lhes pergunta sobre suas leituras no ano que se encerra. As escolhas recaem sobre tudo. Desde poesia, ficção, jornalismo, autoajuda etc.
Continuo lendo livros sobre áreas diversas. Gosto de ficção e poesia, assim como de ciências, história e artes. Não misturo as áreas. Em termos de literatura brasileira, li o que me foi possível. Doze livros ao todo. Na fase atual, o que caracteriza a literatura brasileira é a língua. O português do Brasil é a pátria. Quanto ao ambiente, a literatura brasileira anda pelos campos, cidades e mundo.
Pela ordem de leitura, começo com “Essa coisa viva”, de Maria Esther Maciel (São Paulo: Todavia). Maciel tem se dedicado à análise literária com foco no que se denomina atualmente de zooliteratura. Confesso minha dificuldade com conceitos como ecoliteratura, literatura no Antropoceno, zooliteratura, fitoliteratura. Literatura é literatura, seja qual for o foco. Melhor boa ou má literatura. “Essa coisa viva” menciona formigas, baratas, piolho e plantas, mas o foco é a relação entre mãe e filha. Relação difícil e muito sofrida. Repleta de mágoas. A mãe se vai desse mundo, mas a amargura fica. Parece um livro a mais. Não foi lembrado nas listas. Quem o leu deve esquecê-lo.
Já Bethânia Pires Amaro estreia com “O ninho” (Rio de Janeiro/São Paulo: Record). Trata-se de um livro de contos com escrita ágil. O conto “leite de cacto” narra a relação da mãe com o filho recém-nascido. O fluxo do pensamento e dos sentimentos é rápido, mas bem pontuado. O mesmo pode se dizer de “Colagem”, sobre o cotidiano de uma pessoa no início do Auzheimer. Há contos fortes: “acho que é isso que acontece com as pessoas que vivem demais: perdem a vontade de conversar, ficam muito cansadas e preferem olhar coisas insignificantes, as próprias unhas ou os insetos que passeiam pelo piso, como se registrassem lembranças de última hora.” O começo foi bom. Vejamos se não se trata apenas de fogos de artifício.
“Avenida Beberibe” (São Paulo: Fósforo), de Claudia Cavalcanti, é um pequeno livro de memórias focado num casarão em Recife. A autora é germanista e demonstra um grande conhecimento literário. Sua palavra sobre a relação de Thomas Mann com sua casa na Alemanha antes do exílio provocado pelo nazismo é tocante.
Já “Água turva” (São Paulo: Companhia das Letras), de Morgana Kretzmann, parece um pouco problemático por criar um mundo distópico atual no Rio Grande do Sul entre Brasil e Argentina. O livro enfoca a defesa da natureza numa Unidade de Conservação, relações antigas de família, laços amorosos, interesses políticos escusos, pobres marginalizados, mulher com poderes místicos e mortes violentas. Na bacia do rio Uruguai, a trama se passa nas duas margens: Brasil e Argentina. Há passagens que soam meio ridículas. Terá a autora escrito o romance de olho na televisão ou no cinema?
Michel Laub, um dos meus escritores brasileiros prediletos, volta com “Passeio com o gigante” (São Paulo: Companhia das Letras). O que mais chama a atenção nele é aproximar-se do alvo em círculos concêntricos. Cada círculo, permite ver detalhes não reparados nos círculos anteriores. Ele procedia como um arguto detetive, mas sem escrever romances policiais. A partir de “Solução de dois Estados” (2020), parece que o autor começou a se distanciar de si mesmo. Sendo judeu, tinha certa dificuldade de tratar abertamente da questão palestina. Mas ele não hesita em se posicionar: “A segurança dos judeus hoje é Israel, não mais um debate de intelectuais com medo de pogroms.” Pelo menos, seus livros não cortejam os meios de comunicação de massa.
Também Tatiana Salem Levy voltou com “Melhor não contar” (São Paulo: Todavia). Ela trabalha bastante com casos reais em sua ficção. Seu livro anterior, “Vista chinesa”, versa sobre uma amiga sua que foi estuprada por um estranho quando caminhava na floresta da Tijuca. O livro pretende ser uma carta dessa amiga aos filhos sobre o que lhe aconteceu. Mas Tatiana errou a mão e escreveu um diário com confissões muito íntimas. No seu livro de 2024, a personagem central é ela mesma e seu sofrimento. Seus pais se separaram quando ela era criança. Sua mãe se uniu a um cineasta que a assediou fazendo um desenho dela sem sutiã. Já grande, o padrasto, bêbado, tentou agarrá-la. Sua mãe e sua irmã morreram de câncer. Ela teve filhos. Foi morar em Portugal e se relacionou com uma pessoa. Mas não deu certo. Em tom confessional, Tatiana mostra que sofre muito.
Chico Buarque também retorna com “Bambino a Roma” (São Paulo: Companhia das Letras). Ele pretende que sejam memórias do tempo em que morou na Itália, na década de 1950. Seu pai foi convidado para lecionar numa universidade italiana. Ao mesmo tempo, ele esclarece que se trata de ficção. De fato, os acontecimentos narrados por ele parecem ter ocorrido na semana ou mês anterior. Não existe tom memorialístico no livro. Sabemos todos nós não ser possível resgatar passados distantes com muita clareza. Chico não revela qualquer saudosismo. Ele voltou à Itália para redigir suas memórias ficcionais. Nenhum memorialista retrata com fidelidade seu passado como Chico faz no seu livro, que deve se tornar um sucesso no Brasil e fora dele. Mas o autor está longe da sua melhor ficção, assim como acontece com sua música.
“A extraordinária zona norte” (São Paulo: Todavia, 2024), de Alberto Mussa, é, a meu juízo, o melhor romance que li em 2024, embora não seja seu melhor romance. Mussa ambienta a trama no Andaraí, onde viveu sua juventude. No livro, está a alma antiga dos subúrbios do Rio de Janeiro. Bandidos, polícia, padres, pastores, umbandistas etc. se misturam. Infidelidade masculina e feminina povoa o livro. Entre 1957 e 1967, vivi na zona norte do Rio de Janeiro. O livro pinta um retrato fiel dos subúrbios cariocas nesse tempo ainda não muito dominado por traficantes e milicianos. A vida sexual de homens e mulheres é bem pintada no livro. O sincretismo religioso também. E tudo se mistura num relato polifônico sem conclusões claras.
No meu entendimento de leigo, os livros de Ana Paula Maia criaram a melhor distopia da América Latina, superando bastante as argentinas Samanta Schweblin e Selva Almada. Os personagens de Ana Paula Maia são pessoas sem projetos de vida além do imediato, do amanhã próximo. Eles mais sobrevivem do que vivem. O suicídio é comum em seus livros. O assassinato também. A paisagem é árida. As árvores foram cortadas. Os rios estão poluídos. O ar é fétido. Um de seus ambientes favoritos são os matadouros, onde corre muito sangue. Ela ambienta seus romances entre um natural degradado e o sobrenatural. “Búfalos selvagens” (São Paulo: Companhia das Letras), seu mais recente livro, retoma os personagens Edgar Wilson, Bronco Gil e Tomás, o padre excomungado, num mundo apocalíptico pós-pandemia e num matadouro de búfalos. Em “Búfalos selvagens”, contudo, o mundo distópico de Ana Paula parece repetitivo e enfraquecido. Não é um livro forte como os anteriores.
“A mulher de dois esqueletos” (Porto Alegre: Dublinense), de Júlia Dantas, escritora que eu não conhecia, soou como uma revelação. Ela tem 40 anos e é bastante madura. Escreve sobre sua vida neste romance, ambientado no Rio Grande do Sul e no Uruguai. Tenho encontrado escritores e escritoras com mais idade sem as reflexões dessa autora. “Ter um filho é sempre um ato de egoísmo. Uma ou duas pessoas decidem e não há como perguntar ao potencial filho se ele quer existir. Uma ou duas pessoas resolvem fabricar um ser humano para satisfazer sua própria vontade, criar um cidadão ou o que seja, ter a experiência de um amor ainda inédito, prolongar a estadia na Terra após a morte por meio desse subproduto genético.” A escritora só não lembrou das crianças que vêm ao mundo sem que seus pais as desejem.
“Krakatoa” (São Paulo: Todavia), de Veronica Stigger, pareceu-me mais um livro para dizer que a autora está viva. Desse mundo produtivista ninguém escapa. Artistas devem ter um comportamento industrial: sempre fazendo propaganda de si mesmos. “Krakatoa” reúne reflexões diversas girando em torno de vulcões a partir de uma viagem que a autora fez a Indonésia. Em algumas passagens, ela tenta tirar o sujeito humano da narrativa, como se ele nascesse de alguma outra entidade natural. Mas não vai longe. Parece ser um livro para cair no esquecimento.
Eu diria o mesmo sobre “Caminhando com os mortos” (São Paulo: Companhia das Letras) de Micheliny Verunschk. O livro é o segundo de uma projetada trilogia, sendo o primeiro “O som do rugido da onça” (2021). Nos dois, a autora se movimenta no clima da descolonização. Ela acaba tecendo aquelas reflexões já bem batidas de ter sofrido com a discriminação, da pobreza, da morte, do espírito que fala. Divagações num cenário periférico de uma periferia humana.
Em 8 de janeiro de 1978, saía o primeiro número de “Folha da Manhã”. Nele, figurava meu artigo “Teoria necessária”. Com altos e baixos, minha vida de colaborador com o jornal completa 47 anos, a mesma idade do veículo. Vida longa à “Folha da Manhã”.
*Professor, historiador e ambientalista