Enem, Embrapa e a maçã envenenada
Edmundo Siqueira 08/11/2023 20:44 - Atualizado em 08/11/2023 20:58
A analogia da maçã envenenada é tão batida quanto de fácil entendimento: alguém fica tentado pelo fruto proibido, acaba por dar uma mordida, e sofre sérias consequências. Seja no Jardim do Éden, em florestas encantadas da Disney, ou no anacronismo utópico de parte da esquerda brasileira, é uma história que se repete.

No último domingo (5), a prova do Enem foi duramente criticada por quem acredita que ela foi elaborada sob forte viés ideológico progressista, com objetivo de doutrinar os alunos. Pelo menos três questões foram objeto de pedido de anulação por parte da bancada ruralista no Congresso, com o argumento de que elas estariam promovendo “negacionismo científico” contra um setor que confere “segurança alimentar ao Brasil e ao mundo”.

A verdade é que as questões do Exame Nacional do Ensino Médio são elaboradas por uma equipe independente de professores, e passam pelo crivo do Governo em relação à forma, não ao conteúdo, na maioria dos casos. É preciso testar se as alternativas não facilitam o ‘chute’, ou se possuem algum erro gramatical, para depois encaminhá-las à diagramação. Esse processo é feito pelo Inep — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.

Outra verdade, segundo Manuel Palácios, presidente do Inep, é que 86% das questões que caíram no Enem do último domingo foram elaboradas ainda durante o governo Jair Bolsonaro (Palácios foi ouvido nesta quarta (8), na comissão de educação da Câmara dos Deputados).

Mas não apenas de verdade viveu o último Enem.

Uma das questões questionadas pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) foi a de número 89, da prova de ciências humanas. Nela, o viés ideológico foi evidente, e pior: impôs como certo uma única visão de mundo, onde qualquer divergência seria encarada como a personificação do mal.

No Cerrado, o conhecimento local está sendo cada vez mais subordinado à lógica do agronegócio. De um lado, o capital impõe os conhecimentos biotecnológicos, como mecanismo de universalização de práticas agrícolas e de novas tecnologias, e de outro, o modelo capitalista subordina homens e mulheres à lógica do mercado. Assim, as águas, as sementes, os minerais, as terras (bens comuns) tornam-se propriedade privada. Além do mais, há outros fatores negativos, como a mecanização pesada, a “pragatização” dos seres humanos e não humanos, a violência simbólica, a superexploração, as chuvas de veneno”, enunciou a questão.

Se não bastasse, as alternativas possíveis de resposta trouxeram expressões como “cerco aos camponeses”, “desprezo ao assalariado” e “assédio ao empresariado”.

Embora o conceito de “camponês” seja amplo, e ainda utilizado nos dias atuais, esse era um elemento central nos escritos de Marx diante de uma realidade na primitiva França capitalista. O campesinato trazia a ideia da formação de unidades básicas de produção e vida social, que ainda formavam uma auto-identidade política estabelecida naquela realidade quase feudal.

Nada mais anacrônico. Embora ainda existam realidades exploratórias e humilhantes no agronegócio brasileiro, e alta concentração de terras, ignorar os grandes avanços no setor nos últimos 30, 40 anos, ou em como foi mudada para melhor a realidade do cerrado brasileiro e de outras regiões, e ainda como o agronegócio favorece todo país, é no mínimo uma infantilidade.
O atual governo Lula lançou o maior Plano Safra da história (em relação ao volume de recursos) neste ano, e todos os governos do PT subsidiaram fortemente o setor agropecuário, justamente por entender sua importância e por depender dos resultados que ele entrega.

Além disso, o setor é apoiado por uma empresa pública de excelência, a Embrapa (que fez 50 anos em 2023), que investe pesadamente junto aos produtores em manejos sustentáveis, na cadeia da agricultura familiar e na qualificação da mão de obra (camponeses?) que atua no campo.

O Enem faz certo em trazer perguntas interpretativas, sem ‘decoreba’. Faz certo em promover o debate, e acerta em trazer a necessidade de interpretação de texto, de entendimento da realidade através de matérias que podem — e devem — ser políticas, inclusivas e participativas.

Mas erra quando permite que questões como a 89 imponham como certa uma única visão de mundo, e impedem a formulação de outras tantas possibilidades ideológicas e sistemáticas. Além de não ensinar, oferece munição a grupos extremistas que sabem manejar ambientes virtuais e potencializam visões igualmente maniqueístas.

Vale lembrar que Bolsonaro quis dar a “cara do governo” ao Enem, e que a educação e a cultura são os primeiros alvos de quem pretende doutrinar um povo; uma sociedade. De ambos os lados.

Por isso mesmo, essas áreas, educação e cultura, devem ser o mais plurais possíveis e mais democráticas, amplamente. Pois se refletirem o contrário, estaremos, todos, enquanto nação, comendo uma maçã envenenada. Que pode ser bonita, brilhante, vermelha e suculenta, mas ser ao mesmo tempo uma grande armadilha.

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