Extrema-direita revolucionária e esquerda atrasada - Parte II
Edmundo Siqueira 02/03/2023 20:37 - Atualizado em 02/03/2023 21:41
Continuação de artigo anterior, com mesmo título)


Identitarismo, soberba e silenciamento - a esquerda resistirá?


Algumas premissas precisam — ou deveriam — ser estabelecidas pelo campo progressista para que a análise do momento político que o país atravessa não esteja contaminada por idealizações: 1) o bolsonarismo é um movimento de massa, não composto exclusivamente da classe média; 2) a democracia liberal está em profunda crise; 3) a extrema-direita brasileira é organizada, comunica bem, tem muitos adeptos e passou para uma fase insurrecional; 4) a vitória de Lula em 2022 foi por uma margem muito pequena, mesmo formando uma frente ampla; e 5) a esquerda não tem conseguido propor soluções e não sabe como dialogar com os 49% dos eleitores que optaram por Bolsonaro no último segundo turno presidencial.

Parte do problema comunicacional das esquerdas (aqui falando em socialistas, sociais-democratas, verdes e trabalhistas) está na soberba e na usual "superioridade intelectual" presumida, sem levar em contas as exceções à regra. Classificar como “estúpido” e “obscurantista” tudo que diverge da visão de mundo progressista não vai ao cerne do problema, não procura entender os processos históricos, as imposições religiosas e as condições sociais que levam a aderência de milhares de pessoas à movimentos antivacina, por exemplo.
A linguística de luta das esquerdas tem se limitado às imposições que o campo opositor vem gradualmente introduzindo na sociedade. Questões como liberdades individuais, acesso igualitário às políticas públicas culturais, segurança pública e corrupção, produzem explicações deficitárias e deixam o debate empobrecido, sem que o campo progressista consiga reverter as narrativas. O papel do Estado em uma sociedade desigual como a brasileira tampouco é debatido como deveria, sendo essa uma função vital de ideologias de esquerda.

Soberba e superioridade moral e intelectual que se reflete também em baixa capacidade de autocrítica. A evidência dessa afirmação é facilmente verificada na resistência que o próprio termo “autocrítica” provoca em setores da esquerda, principalmente petista. A capacidade de olhar criticamente para as próprias posições e ações é vista como uma fraqueza enorme, e não como a oportunidade e qualidade que possui, a autocrítica, de promover ajustes, de capitular com o regime vigente. E de ajustar mediante certas condições. O que se percebe, via de regra nas esquerdas é a autocelebração e a autocontemplação, como se estivessem em pedestais inalcançáveis à críticas. Algo como uma esquerda que sempre quer ser “instagramável”.

Outra inequívoca constatação do enfraquecimento das esquerdas no Brasil foi a vitória de Lula por uma pequena margem de votos (2,1 milhões), ainda que tenham promovido uma frente ampla, e mesmo após a desastrosa condução de Bolsonaro na pandemia. Apesar de vitoriosa em três eleições, a centralização das esperanças da esquerda na figura política de Lula tem prazo de validade, que possivelmente vencerá no término do atual mandato.
Ricardo Stuckert/Divulgação
A correlação de forças que criou-se em volta da candidatura lulista decorreu da enorme habilidade política do líder e candidato, mas também do medo justificado de setores democratas com o avanço do fascismo, representado em Bolsonaro. Mas não havia uma nova proposta de país, ou respostas claras sobre o terceiro mandato de Lula; sequer foi exposto com clareza o que ele pensava sobre economia durante a campanha. A vitória petista aconteceu principalmente por medo, não por ideal.

No Parlamento, as esquerdas não tiveram força sequer para apresentar um candidato competitivo na Câmara. No Senado, a vitória de alguém não ligado ao PT foi um alívio, pois desbancou o candidato ligado ao bolsonarismo. A incapacidade de apresentar nomes fortes se estende também em outros cargos. A centralidade que Lula exerce no campo mais à esquerda do espectro político construiu não apenas dependência, mas calou vozes que deveriam propor temas contramajoritários, que tentam impedir que a maioria se exceda pela via democrática distorcendo os valores constitucionais e oprimindo as minorias. Isso se dá para não interferir no fazer político de Lula, que sempre foi conciliatório.

Muito se culpa os movimentos identitários e as pautas classistas pelo distanciamento das esquerdas do “homem comum”, ou do “brasileiro médio”. Mas não se trata de descredibilizar as mobilizações a favor de minorias marginalizadas, mas sim da apropriação desses movimentos por ideólogos de esquerda que não conseguem propor soluções reais para problemas cotidianos.
O campo direitista invariavelmente deturpa — por incompreensão ou perversidade — o papel do Estado, principalmente quando este se ocupa da necessidade de proteger as minorias oprimidas. As liberdades individuais são gravemente suprimidas pela desigualdade, e igualar ao máximo possível as condições de concorrência dentro do organismo social é justamente papel do Estado nas democracias liberais.

A ilusão contemporânea sobre a manutenção da frente ampla, com a primazia das esquerdas, é semelhante a do final do governo Lula II, quando acreditou-se que se perpetuaria o modelo por mais algumas décadas, e um reformismo pactuado e seguro seria possível. Não ocorreu. Mesmo com aprovação popular em níveis raríssimos (Lula termina o governo com 84% de “bom e ótimo”) não foram impostas as reformas estruturantes necessárias, que serviriam para dar sustentabilidade ao próprio modelo.

Embora milhões de pessoas tenham ascendido socialmente, e tenha se formado uma “nova classe média”, as fatias mais altas da pirâmide concentraram ainda mais riqueza. A saída para que os pobres fossem reconhecidos como “classe média” foi dar condições para colocar os filhos em escolas particulares, contratar planos de saúde e entrar em financiamentos de longo prazo para comprar veículos. O sistema era frágil e causou alto endividamento das famílias. Embora tenha-se empreendido investimentos significativos em educação, principalmente em Institutos Federais, não buscou-se garantir direitos essenciais pelas mãos do Estado, não houveram esforços para mudar a lógica excludente, e não foram oferecidas condições amplas de igualdade.


A persistência de Lula como único líder competitivo e a manutenção da lógica de grandes frentes contra uma extrema-direita em ascensão, continuará calando a esquerda brasileira e limitando suas lutas ao identitarismos e à “esquerda Instagram”. A mobilização de forças sociais democráticas enfraqueceu, e até as ruas foram ocupadas pela extrema-direita que se tornou insurrecional. As promessas principais do campo progressista não foram cumpridas, e soma-se a isso os casos de corrupção dos governos do PT.

A crítica — e a autocrítica — da esquerda não deve ocorrer por nivelamento com o bolsonarismo, que se caracteriza por elementos fascistas. Mas devem ser feitas justamente para que a democracia não volte a ficar ameaçada, para que haja trabalhos profundos de educação e memória nas Forças Armadas, e que não se cometa mais o erro de tratar o adversário democrático como inimigo. Um dos principais eixos definidores da democracia é a existência de oposição; não de governo. Autocracias e ditaduras possuem governos; mas não permitem oposições.

Novos retrocessos são tão indesejáveis quanto novidades ultrapassadas.

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