Identitarismo, soberba e silenciamento - a esquerda resistirá?
Algumas premissas precisam — ou deveriam — ser estabelecidas pelo campo progressista para que a análise do momento político que o país atravessa não esteja contaminada por idealizações: 1) o bolsonarismo é um movimento de massa, não composto exclusivamente da classe média; 2) a democracia liberal está em profunda crise; 3) a extrema-direita brasileira é organizada, comunica bem, tem muitos adeptos e passou para uma fase insurrecional; 4) a vitória de Lula em 2022 foi por uma margem muito pequena, mesmo formando uma frente ampla; e 5) a esquerda não tem conseguido propor soluções e não sabe como dialogar com os 49% dos eleitores que optaram por Bolsonaro no último segundo turno presidencial.
Parte do problema comunicacional das esquerdas (aqui falando em socialistas, sociais-democratas, verdes e trabalhistas) está na soberba e na usual "superioridade intelectual" presumida, sem levar em contas as exceções à regra. Classificar como “estúpido” e “obscurantista” tudo que diverge da visão de mundo progressista não vai ao cerne do problema, não procura entender os processos históricos, as imposições religiosas e as condições sociais que levam a aderência de milhares de pessoas à movimentos antivacina, por exemplo.
Soberba e superioridade moral e intelectual que se reflete também em baixa capacidade de autocrítica. A evidência dessa afirmação é facilmente verificada na resistência que o próprio termo “autocrítica” provoca em setores da esquerda, principalmente petista. A capacidade de olhar criticamente para as próprias posições e ações é vista como uma fraqueza enorme, e não como a oportunidade e qualidade que possui, a autocrítica, de promover ajustes, de capitular com o regime vigente. E de ajustar mediante certas condições. O que se percebe, via de regra nas esquerdas é a autocelebração e a autocontemplação, como se estivessem em pedestais inalcançáveis à críticas. Algo como uma esquerda que sempre quer ser “instagramável”.
Outra inequívoca constatação do enfraquecimento das esquerdas no Brasil foi a vitória de Lula por uma pequena margem de votos (2,1 milhões), ainda que tenham promovido uma frente ampla, e mesmo após a desastrosa condução de Bolsonaro na pandemia. Apesar de vitoriosa em três eleições, a centralização das esperanças da esquerda na figura política de Lula tem prazo de validade, que possivelmente vencerá no término do atual mandato.
No Parlamento, as esquerdas não tiveram força sequer para apresentar um candidato competitivo na Câmara. No Senado, a vitória de alguém não ligado ao PT foi um alívio, pois desbancou o candidato ligado ao bolsonarismo. A incapacidade de apresentar nomes fortes se estende também em outros cargos. A centralidade que Lula exerce no campo mais à esquerda do espectro político construiu não apenas dependência, mas calou vozes que deveriam propor temas contramajoritários, que tentam impedir que a maioria se exceda pela via democrática distorcendo os valores constitucionais e oprimindo as minorias. Isso se dá para não interferir no fazer político de Lula, que sempre foi conciliatório.
Muito se culpa os movimentos identitários e as pautas classistas pelo distanciamento das esquerdas do “homem comum”, ou do “brasileiro médio”. Mas não se trata de descredibilizar as mobilizações a favor de minorias marginalizadas, mas sim da apropriação desses movimentos por ideólogos de esquerda que não conseguem propor soluções reais para problemas cotidianos.
A ilusão contemporânea sobre a manutenção da frente ampla, com a primazia das esquerdas, é semelhante a do final do governo Lula II, quando acreditou-se que se perpetuaria o modelo por mais algumas décadas, e um reformismo pactuado e seguro seria possível. Não ocorreu. Mesmo com aprovação popular em níveis raríssimos (Lula termina o governo com 84% de “bom e ótimo”) não foram impostas as reformas estruturantes necessárias, que serviriam para dar sustentabilidade ao próprio modelo.
Embora milhões de pessoas tenham ascendido socialmente, e tenha se formado uma “nova classe média”, as fatias mais altas da pirâmide concentraram ainda mais riqueza. A saída para que os pobres fossem reconhecidos como “classe média” foi dar condições para colocar os filhos em escolas particulares, contratar planos de saúde e entrar em financiamentos de longo prazo para comprar veículos. O sistema era frágil e causou alto endividamento das famílias. Embora tenha-se empreendido investimentos significativos em educação, principalmente em Institutos Federais, não buscou-se garantir direitos essenciais pelas mãos do Estado, não houveram esforços para mudar a lógica excludente, e não foram oferecidas condições amplas de igualdade.
A persistência de Lula como único líder competitivo e a manutenção da lógica de grandes frentes contra uma extrema-direita em ascensão, continuará calando a esquerda brasileira e limitando suas lutas ao identitarismos e à “esquerda Instagram”. A mobilização de forças sociais democráticas enfraqueceu, e até as ruas foram ocupadas pela extrema-direita que se tornou insurrecional. As promessas principais do campo progressista não foram cumpridas, e soma-se a isso os casos de corrupção dos governos do PT.
A crítica — e a autocrítica — da esquerda não deve ocorrer por nivelamento com o bolsonarismo, que se caracteriza por elementos fascistas. Mas devem ser feitas justamente para que a democracia não volte a ficar ameaçada, para que haja trabalhos profundos de educação e memória nas Forças Armadas, e que não se cometa mais o erro de tratar o adversário democrático como inimigo. Um dos principais eixos definidores da democracia é a existência de oposição; não de governo. Autocracias e ditaduras possuem governos; mas não permitem oposições.
Novos retrocessos são tão indesejáveis quanto novidades ultrapassadas.