Extrema-direita revolucionária e esquerda atrasada
Edmundo Siqueira 27/02/2023 21:21 - Atualizado em 27/02/2023 21:26
Se existe alguém do campo progressista — de esquerda — que esteja plenamente satisfeito com o cenário político atual, é preciso decepcioná-lo; não, não está tudo bem. A derrota de Jair Bolsonaro, a volta à presidência de um líder popular vindo da classe trabalhadora e a interrupção de um golpe de Estado em 8 de janeiro deveriam ser vitórias consideráveis, mas o buraco para o campo progressista é — muito — mais embaixo.

Mesmo com quase 700 mil mortes na pandemia, muitas causadas por ineficiência do governo anterior com o evidente desestímulo à compra e aplicação de imunizantes, Bolsonaro perdeu as eleições por apenas 2,1 milhões de votos, disputando com o maior líder de esquerda que o Brasil já produziu. Mesmo com todas as declarações desastrosas do ex-presidente, aumento substancial da desigualdade e o caos institucional provocado, os adeptos ao bolsonarismo continuaram com uma surpreendente adesão.

Sérgio Lima/AFP
Muitos fatores contribuem para isso. Alguns são mais perceptíveis, resultados de construções históricas do país e de movimentos políticos ao redor do mundo, como o colapso da democracia liberal, a ascensão de uma nova extrema-direita que tem o Brasil como laboratório, a indiferença social cultivada por anos — terreno fértil para a extrema direita — e os diversos casos de corrupção dos governos do PT.
E há também elementos subjetivos, como o aumento da ligação emocional de pessoas por muitos anos silenciadas que encontraram-se através das redes sociais e conseguiram nos discursos da direita radicalizada uma forma de ampliar sua voz, de serem efetivamente ouvidos. Além dos símbolos que a figura política e pessoal de um líder como Jair Bolsonaro costuma emanar.

O bolsonarismo é um movimento de massa. O diagnóstico do momento que o país atravessa passa por essa evidência. Embora esteja inflado por parte do empresariado e instigado por uma rede de comunicação criada, que engloba redes sociais e veículos de comunicação profissionais, abarcar cerca de 49% de eleitores demonstra que não é um movimento de classe média ou elitizado. Trata-se de um movimento de massa que consegue imprimir coletividade e senso de pertencimento em um enorme grupo de indivíduos. São pessoas que idealizam o líder carismático, em uma nuance narcísica, que o indivíduo passa a se ver no poder, compartilhando as mesmas fraquezas e inabilidades. Ou a visão de um "pai" que resolve os problemas, às vezes com grosseria e violência, mas que propõe soluções práticas aos problemas. O bolsonarismo tratou de humanizar Bolsonaro, para que esses elementos subjetivos consigam cumprir o objetivo de fidelização incondicional.

A democracia liberal que desde o século 17 apresenta soluções ao absolutismo e ao autoritarismo, e foi resultado de revoluções e movimentos de independência — caso francês e americano, por exemplo —, encontra-se em um momento perigoso, onde não oferece resultados práticos para os problemas estruturais em um mundo globalizado e com relações interdependentes entre os países. Essa possível falência do modelo também advém das promessas que a democracia não vem conseguindo cumprir, principalmente em igualdade de oportunidades e nos aspectos de liberdades individuais. Ora, quando o Estado falha na oferta de direitos básicos e a democracia precisa se proteger limitando liberdades, os efeitos pendulares provocam movimentos libertários que explicam, em alguma medida, a negação da ciência, da cultura e da educação formal.

Movimento de massa que passa a ser insurrecional

Os atos de 8 de janeiro em Brasília são a evidência catastrófica de que o bolsonarismo não se arrefece com a derrota eleitoral; ao contrário. Convencidos — ou não — de que as eleições foram fraudadas, o sentimento predominante em parte relevante do bolsonarismo é o de que a luta deve continuar, pois quem venceu a disputa é um inimigo, não um adversário. A insurreição, o ato de virar-se contra o sistema através de ações armadas ou com emprego de violência, mostra-se como outra fase do bolsonarismo, em última análise, outro momento da extrema-direita brasileira.
Insurreição em 8 de janeiro
Insurreição em 8 de janeiro / Reprodução
O bolsonarismo como movimento de massa — com a manutenção ou substituição de Bolsonaro — passa a ter uma caráter ainda mais revolucionário quando se encontra na condição de oposição ao governante da ocasião, principalmente quando esse se materializa na figura de Lula. Se antes a ideia era um autogolpe, para que amplos poderes pudessem ser delegados ao mandatário, para que ele na condição de “representante do povo” pudesse promover a limpeza ou as revoluções necessárias no sistema, agora a ideia é ainda mais forte: é preciso tomar o poder do inimigo.

(Continua na parte II: Identitarismo, soberba e silenciamento - a esquerda resistirá?)

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]