Edmundo Siqueira
28/01/2022 13:26 - Atualizado em 28/01/2022 13:28
A censura começa assim: por um bom motivo.
Seja na direita ou na esquerda, censurar alguém, escolher o que pode ou não ser dito ou publicado, com base em critérios morais ou políticos, é um fetiche quase irresistível aos autoritários. Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido parece passar a ser um censor.
Nestas últimas semanas, dois episódios de “cancelamento” — nome moderno para o ato de calar alguém — tiveram como justificativa a “justiça” e “bons motivos”. O primeiro foi sobre um artigo publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo, de autoria do antropólogo e poeta Antônio Risério. O segundo cancelamento recaiu sobre uma música de Chico Buarque — “Com Açúcar e com Afeto”.
Dizer se um trabalho artístico ou informativo é digno ou não de ser publicado, é um poder perigoso. No caso de Risério, o pedido de censura foi formal. Em um manifesto assinado por jornalistas, calar o antropólogo foi solicitado. Ele e a Folha não se deixaram intimidar pelos propensos censores, receberam apoio, mas o cancelamento nas redes sociais foi inevitável. Possivelmente, Risério teria grandes dificuldades hoje em escrever para um veículo de grande circulação.
O artigo dele é ruim. Levanta uma tese um tanto quanto descabida; citando exemplos estrangeiros para fazer da exceção uma regra, traz uma possível ameaça relacionada ao racismo de negros contra brancos. Risério foi acusado (com justiça aqui) de defender o indefensável: “racismo reverso” em um país como o Brasil. Mas não escreveu nada que pudesse ser acusado de crime.
Defender Antônio Risério de seu cancelamento não significa concordar com sua tese. Tampouco significa dizer que a liberdade de expressão é um direito absoluto. Há limites. E eles estão definidos em lei. Não em censores.
O caso de Chico foi uma autocensura. Ele afirmou que não cantará mais a música "Com Açúcar e com Afeto" que foi considerada machista por alguns grupos de feministas. A música é de fato machista, embora tenha sido encomendada por uma mulher, Nara Leão. Mas é arte, e como tal serve para marcar um entendimento da época, explica contextos, e as problemáticas vividas. Se hoje é ofensivo, jogar debaixo do tapete do identitarismo não mudará realidade alguma.
Uma obra de arte é um organismo vivo. Ela passa a mensagem que passa, independente da vontade futura de seu autor, mesmo genial como Chico. A arte é atemporal. “Com açúcar e com afeto” é um retrato artisticamente belíssimo da sociedade sexista brasileira. E afinal, ela foi uma denúncia ou uma apologia ao machismo?
Se afirmarmos que não houve escravidão, por exemplo, não reconheceremos a necessidade premente de lutar contra suas causas. Tudo parte de identificar que temos um problema. A partir daí, enfrentá-los. E deixar a história cumprir um dos mais importantes papéis: ensinar. Ou então cairemos na “Tese Morgan Freeman”, que basta deixar de falar em racismo que ele desaparece.
Não há harmonização facial identitária na sociedade brasileira que passe a produzir um rosto sem marcas. Elas são profundas demais. Marcas de escravidão, violência contra mulher, homossexuais, índios, pretos... não há maquiagem que resolva o machismo entranhado em qualquer rosto feminino mascado pela submissão.
Esconder e cesurar podem resolver. Mas apenas se vierem acompanhadas de ditadura. Assim, os assuntos proibidos, ou que machucam, ou mesmo a história, serão contados como o censor quer, construindo a sociedade que um grupo deseja. Isso já foi tentado na história, e não terminou bem. Ou o nazismo é tabu?