Guiomar Valdez: Direita e Esquerda, vou ver diferente?
Muitas análises já foram feitas a partir do resultado do 1º turno das eleições municipais 2024 e das pesquisas e expectativas para a finalização desse processo (amanhã - 2º turno). Em nossa Campos dos Goytacazes/RJ a decisão soberana dos seus eleitores fechou o processo já no 1° turno, com a reeleição do atual prefeito e com um legislativo pouco renovado, consolidando o caráter ainda político-conservador, às vezes, reacionário dos cidadãos e das cidadãs campistas e de seus agrupamentos e lideranças locais. Democraticamente nos quadros do (neo)liberalismo eleitoral, assim seja!
Num sobrevoo, assim aconteceu na maioria dos mais de 5.000 municípios desse país, que, provavelmente, segundo as pesquisas sérias e responsáveis, vai se confirmar nos resultados de amanhã. Ou seja, nessa quadra histórica, em sua maioria somos uma região e um país onde se misturam e interagem o conservadorismo e reacionarismo plenamente posto e atualizados em suas versões, já conhecidas! Democraticamente nos quadros do (neo)liberalismo eleitoral, assim seja! Logo, não há dificuldade nenhuma em concluir que os espaços progressistas e de esquerda (com toda sua histórica heterogeneidade, às vezes ‘fraticida’) rebaixaram qualitativamente seus espaços e territórios eleitorais.
Num breve balanço histórico contemporâneo, já na década de 1970 (em plena ditadura empresarial-militar) ressurge no Brasil e em várias partes do mundo movimentos sociais, organizações e partidos de esquerda, com inspiração histórica no socialismo ou no comunismo. Com uma marca inconfundível de heterogeneidade teórica e programática, portanto, com disputas internas acabando por levar a constituição de correntes, que, infelizmente, geraram lutas ‘fraticidas’, esfacelamentos, expurgos (ou ‘cancelamentos’?). Já se vão mais de 40 anos de experiências e, neste balanço, tivemos momentos de grandes vitórias eleitorais, nos marcos da democracia (neo) liberal, protagonizado e conduzido pelo Partido dos Trabalhadores e outros partidos do mesmo campo. Hoje, vivenciamos sua crise melancólica, de horizonte curto e de forma acrítica de seus rumos. Qual o ‘rosto’ dessa crise, que as eleições municipais 2024 consolidam?
Ele está refletido no rebaixamento à luz dos valores ético-políticos inspirados no Humanismo e na Razão Iluminista também geradora da utopia do fim do sistema capital que tudo transforma em mercadoria (pessoas, valores, desigualdades, violências, mortes e vidas). Pensando e exercitando ao longo do tempo em realizar a construção de um novo tipo de sociedade e de sistema de produção de maneira a criar um mundo sustentável, justo e melhor para todos! Este rosto está na opção teórica e programática do PT e da face hegemônica do que denominamos de ‘Lulismo’, quando se adaptou ao status-quo do fazer política no Brasil, compreendendo que conciliar era o caminho (sem volta!); que as eleições e vitórias seriam o horizonte a ser conquistado; que o pragmatismo político bastava em si mesmo; que personalismo, liderança carismática e eficiente em negociações também bastava em si mesmo.
Ora, são mais ou menos quatro décadas de experimentos sob uma base material em crise sistêmica e constante no mundo e no Brasil! E uma História de cinco séculos de dependência econômica e cultural e de desvalorização do trabalho! A forma empresarial-burguesa (financeira e especulativa) de sair dessa crise produziu um caldo cultural de reavivamento profundo do individualismo (agora, exacerbado), da competição (preferencialmente sem nenhuma regra), da naturalização da desigualdade e dos excluídos contemporâneos (aqueles que não servem nem para serem explorados...), de uma visão fragmentada e atomizada do ser humano. Descartando, portanto, o ser ontológico da natureza humana, sua interdependência que necessita do outro, do pertencimento e de relações profundas entre si e com a natureza.
Foi nesta conjuntura que realizaram as ações da esquerda brasileira conduzida pelo ‘Lulismo’ e o PT! E, por esta razão, é compreensível a mudança de rumo. As ações no âmbito socioculturais foram políticas compensatórias, de base identitária ou afirmativa (raça, gênero, ambientalista, por exemplo) e mesmo de combate à fome. No campo político, o pragmatismo dito necessário foi incorporar as mesmas práticas tradicionais, reforçada pelos fartos recursos dos fundos partidários, a ‘profissionalização’ de sua militância, ter no horizonte apenas a democracia burguesa eleitoral. Aliás, de curto horizonte (de dois em dois anos)! Na área econômica, então, incorporação da política econômica neoliberal, desindustrializante, manutenção do caráter primário da economia, com destaque para o agronegócio e a continuidade da submissão ao capital financeiro-especulativo. Salve a liberdade de escolha! Todas elas, portanto, dentro do receituário dominante do Capital! Objetivamente isso não se pode negar!
Não entrarei nas informações, dados e nas análises dos desdobramentos deste caminho escolhido (daria um outro artigo). Aponto, apenas, alguns aspectos como a situação da frágil economia produtiva, a “vontade fraca”, desmobilizante, dos movimentos sociais, o desencanto utópico e coletivo, uma sociedade fragmentada em bolhas, insegura e violenta. Tal situação, 40 anos depois, pode começar a explicar não apenas os resultados eleitorais de 2024 como também o aperto que foram as eleições majoritárias de 2022.
A direita e o conservadorismo acanhadíssimos há pouco tempo, aparecem revigorados. Claramente diferente dos tempos da hegemonia do PSDB e seus partidos aliados. O extremismo antidemocrático inicia este processo e se espalha por todo país e classes sociais. Percebo, contudo, nesta eleição, que o ‘capitão’ perde força em sua liderança! Outros personagens disputam este lugar. E mais! O conjunto de políticos e partidos vitoriosos nestas eleições, que beberam nesta fonte antidemocrática do capitão, não necessariamente personalizam a fórmula truncada, desmedida de seu ‘mestre’. Estaria a direita clássica se fortalecendo e o extremismo de direita perdendo fôlego (mesmo com os seus novos representantes vencedores ou disputando o 2º turno)? Vejo o prefeito reeleito de Campos dos Goytacazes/RJ e outros da região como exemplos dessa novidade, como observo em tantos outros eleitos e reeleitos Brasil afora. Aguardemos...
No campo da esquerda, e mesmo de modo mais amplo no progressista, tendo o ‘Lulismo’ como condottiere, não podemos negar a crise do seu rumo, dos seus métodos, dos discursos de vontade fraca e alienante. Refletida, por óbvio, na frágil capacidade de mobilização e de organização popular, de massa. Pilares de sua origem e consolidação no cenário político brasileiro no final da década de 1970, nas décadas de 1980 e 1990! O que posso afirmar, entretanto, é que existem muitas ideias e várias ações que interpretam e já realizam a vontade humanista vigorosa da utopia para além do capital! A sua visibilidade ainda é pouca, está nas periferias e é preciso ter ‘olhos para ver e ouvidos para escutar’. Dando um exemplo concreto, e deste mês de outubro, apresentado na FLIP 2024 (Paraty-RJ): uma pesquisa do Instituto Alameda e da Periferia Brasileira de Letras – PBL/FIOCRUZ, apresentada em mesa nomeada “Retratos do Literato quando Político – Reabilitação de Utopias na Periferia Brasileira”. Nela, foi debatido e questionado o papel da utopia na contemporaneidade assim como a contribuição dos homo literatus para tais e quais desejos de revolução. Além desta mesa, outras foram apresentadas no sentido do ESPERANÇAR, e ganharam forte espaço na Casa da Favela (casa parceira da FLIP), organizada pela Agência de Notícias da Favela (ANF).
Finalizando, deixo duas advertências de Antônio Gramsci para nós, do campo da esquerda e progressista: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”, e “Na experiência histórica [...] a ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva. A História ensina, mas não tem alunos”. Sigamos em frente! Pode ser diferente!
* Historiadora e professora do IFF