Elmar Rodrigues Martins - Coisas que 'todo mundo' sabe....
Elimar Rodrigues Martins 06/12/2021 19:51 - Atualizado em 08/12/2021 12:22
Na saída de Campos, rumo a Grussaí, olhando para a esquerda, mas sem procurar nenhuma orientação ideológica, vi um cartaz que me informou muito, apregoando e garantindo, textualmente, que “direitos não são favores”. O que parece que “todo mundo” sabe. Pessoalmente, acho ótimo não confundir uns com outros, pensei.
Mas, não sei bem como etiquetar o que vou tentar dizer, complementando. Não sei se como maluquice pura e minha, daquelas que nos ameaçam visitar nossa (ou minha) chegante velhice. Não sei se chamarei de Filosofia do Direito. Concedam-me o benefício da dúvida, o que, no fim, é também fazer Filosofia. Pode ser que talvez eu apenas busque matar saudades cortando as asas do Tempo, para que meu passado me revisite e permaneça pelo menos um pouquinho comigo. Os gregos antigos tentaram agir assim com a Vitória Áptera. Mas, isso seria fazer Mitologia. Ou Psiquiatria, que, aliás, é um saber respeitável, que o acatado psiquiatra Thomas Szasz queria incluir não na Medicina, mas na Mitologia. De qualquer modo, dizíamos brincando que, segundo a lei portuguesa, depois de executada uma condenação à pena de morte, caberia democraticamenete recurso, o qual teria efeito suspensivo... Brincávamos nós assim pelos corredores da Faculdade de Direito, então na vestusta rua do Catete. Rua cujos bondes os colegas mineiros não tinham comprado ainda. Mas, enxergávamos, sim, o futuro, o hoje, como horizonte intocável a ser tateado como um fantasma dourado. Assim víamos o hoje, e alguns dos seus problemas, tudo em estado de hipótese. Assim, algumas coisas aprendi, e armazenei então, desarrumadamente embora, em minha mala de trotamundo, para aplicar ao agora. E o cartaz me trouxe relembranças agora sem os artifícios embora de um Ray Bradbury.
Aprendi que é difícil a leitura de uma lei, ou do texto constitucional, mas estou acostumado a lê-los, embora trema de medo (e nem me atreva) diante de uma singela conta de somar. Ademais, sei que a intepretação de um texto pode mudar, se muda a realidade que o cerca, ou que ele se destinava a cercar. Cada “pedaço” do texto constitucional deve ser entendido como parte harmônica de um conjunto regido por uma espécie de gramática. Muitas vezes, “fazer uma lei” para solucionar facilmente (pensa-se) um problema exigiria que se revogasse primeiro a lei da gravidade. Seria como amputar um dedo para fazer cessar dor, hemorragia ou infecção nele. Aliás, você sabe quantas leis existem em vigor (real ou aparente) entre nós? Aparente? Cada lei geralmente termina com um mefistofélico “revogam-se as disposições em contrário”. Quais especificadamente se revogam? Parece que nem o autor da lei nova sabe. Mas, alguém conhece todas as leis em vigor? Sabe-se que há um dispositivo mais abrangente que determina que ninguém poderá alegar, como justificativa de um erro, o desconhecimento de nenhuma delas. O que é mais dramático no caso das leis penais — setor onde eu ignoro menos — onde frequentemente me questiono sobre isso. E fui defensor público em São João da Barra, Bom Jesus do Itabapoana, Itaperuna (Vara de Júri), São Fidélis, Conceição de Macabu, Santa Maria Madalena, Macaé, Natividade, Cambuci, Itaocara, Nilópolis, São Sebastião do Alto. Em Campos, fui por defensor, depois diretor do presídio (Instituto Presídio Norte do Estado, o da ponte, único de então), depois continuei atuando como defensor e advogado novamente, como defensor da Vara de Júri de Campos. Durante todo esse tempo, fiz tantos júris que parei de contar, e ensinava em faculdades, carregando sempre, até me aposentar, na ilharga a possível ilegalidade de não conhecer todas as leis, logo, “todos os direitos”.
Tendo que trotar, pelas ruas de Campos e demais, com um medo danado de, por desconhecimento que reputo indesculpável, pisar sem querer em alguma lei augusta e sacrossanta. Porque relacionaram, não faz muito tempo,via internet, 13 leis delegadas, pelo menos mais de 34 mil leis em vigor, das quais 10.204 leis ordinárias, 105 leis complementares, 5.834 medidas provisórias, 13 leis delegadas, 11.680 decretos-leis, 322 decretos do governo provisório, e 5840 do Poder Legislativo. Coisas assim. Outras fontes apontam muito mais.
Tudo isso quanto à Legislação Federal. Curioso notar que quando alguns regimes se vão, algumas de suas leis permanecem vivas por durante muito tempo após sua morte. Por exemplo, o Decreto-Lei nº 2848/40 está em vigor desde 7/12/40, ou seja, desde a ditadura (perdão: “Regime Militar”) Vargas, embora enormemente modificado pelas constituições ou leis ordinárias posteriores. Ainda na mesma área penal (onde eu ignoro menos, ou devia) nosso Código Penal deveria ter sido substituído por outro que foi até aprovado e publicado, sancionado, mas se diz que não entrou em vigor nunca. Também já houve outra vez publicação errada de lei penal tributária, pertinente só a gestor público, determinando não ser mais crime certa omissão de recolhimento de tributo pelos servidores só. A publicação extendeu tal impunidade a todos os cidadãos. Parece até que chegou ou quase a ser indevidamente aplicada, absolvendo até uns poucos como lei mais benigna. Mas, logo depois foi “despublicada”. Tudo isso quanto à Legislação Federal, à qual devemos ainda somar a dos estados e municípios. Quantas leis municipais vigoram em nossa intrépida São Salvador dos Campos dos Goytacazes?
Não é muito fácil saber que lei se aplica a um caso, a um fato, uma ocorrência. Isso apesar de, quando se trata de matéria penal ou política, cada cidadão se achar qualificado até para julgar. A democracia, aliás, teria nascido mais ou menos assim em glebas atenienses, mais ou menos às cegas,. Mas, para início de conversa, não podemos impor ao Poder Judiciário às cegas nossas convicções e simpatias para decisões de julgamento, tornando certeza jurídica o que, a nosso ver, “todo mundo sabe”. Principalmente na área penal, em que tendemos a transformar nossa indignação em verdade e nossa afeição em ciência, prque a Constituição estabelece — o que muitas vezes a gente esquece — que um dos fundamentos da própria República é, explicitamente, “a dignidade da pessoa humana”. Logo, garanti-la e os corolários disso não seria um simples objetivo, mas sim algo a mais, maior, requisito de validade que deve iluminar qualquer lei ou ato de governo. Principalmente uma condenação criminal. Um fundamento que, como tal, não pode ficar indolentemente adormecido num número do artigo primeiro da Constituição. Porque deve transitar, daí, para alicerçar nossa capacidade de julgar e... opinar racionalmente. Não só a dos juízes...
Já no Direito dos romanos, sistema que reconhecia a dignidade não do ser humano, mas do “cidadão romano”, se determinava aquele “in dubiis réus est absolvendum”, aquele “in dubio pro reo” recolhido em nosso sistema, por exemplo, pelo art 386,VII do Código de Processo Penal. Aí se manda que o juiz absolva o réu, “desde que reconheça não existir prova suficiente para a condenação”. Tal princípio teria adquirido vigor partindo dos costumes ingleses e seria inscrito na Magna Carta inglesa de 1215 , antes dela na Carta das Liberdades também inglesa. Tudo isso ainda hoje em pleno vigor na Inglaterra. A Magna Carta foi acordo entre os barões e o rei, e é considerada longínquo avô das constituições civilizadas atuais. De se notar que nos esquecemos de que as “formalidades” do processo são parte dessas lutas inglesas contra a amplitude exagerada do poder real. Era uma luta também pela manutenção ou restauração de antigos hábitos de governo ingleses, direitos de classe já anteriormente reconhecidos em 1100 por Henrique I, por escrito, na chamada Carta das Liberdades. Também é na Magna Carta que se dispõe que os julgamentos sejam realizados “segundo a lei da terra”. Dispositivo donde provêm mandamentos de nossa Constituição, que estabelece que cada um seja julgado, e todos indistintamente o sejam, segundo o “devido processo legal” . O que é tal processo? O estabelecido costumeiramente ou (entre nós) por lei: processo igual para todos (porque “legal”, ou seja, estabelecido na Constituição, até com suas exceções, pelo povo através de seus representantes). Daí as regras processuais do Código de Processo Penal, como que “executando”, traduzindo, colocando em prática no dia a dia a Constituição, em respeito da dignidade humana. Por exemplo, o direito de ser julgado (Cristo ou Barrabás) por juiz imparcial. Daí emerge, para estranheza e indignação de alguns, a nulidade de certas sentenças, às vezes só reconhecidas quando o processo chega, e se chega, ao Supremo. E se não chegar? Aí “morreu Neves”. Infelizmente e com muitos pêsames...
Porque processo é principalmente prova. “Instruir um processo” é produzir prova que valha, porque prova tem suas regras. Mais: é necessário, por exemplo, que a testemunha “não se engane nem queira enganar”, para que não se justifique chamar tal prova de “a prostituta das provas”. A esse respeito, se aprende muito de realidade com a leitura indispensável de “A Mentira nos Tribunais”, do magistrado italiano Luigi Battistelli, estudo de depoimentos em que ocorrem mentiras, até por vezes involuntárias e sem culpa do confitente ou depoente. Às vezes, até por culpa do finterrogador. Às vezes, até por erro de percepção. Leia-se o fiundamental “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, em dois volumes, de Nicola Framarino dei Malatesta. Vale ainda “La Critica del Testemonio”, de François Gorphe, ou “Apreciation de la Prueba”. Porque a análise de prova — e só se falou na testemunhal — é uma atividade científica encartada dentro do Direito, cabendo amplo recurso às ciências auxiliares. Ainda é bom o “Manual de Psicologia Jurídica”, de Emilio Mira y Lopes. Feche-se com o “Tratado de la Prueba em Materia Criminal”, de C. J. A. Mitermaier, e as obras de Émile Bonnier. Porque isso é o necessário para entender a verdade que, às vezes (mais vezes do que, em verdade, as aparências e nós desejaríamos), os depoimentos ocultam. Ainda serve de base Enrico Altavilla, em sua “Psicologia Jurídica”. Tais autores nos ajudam a entender certas absolvições que assombram determinados setores da imprensa — silentes os demais — apesar do que “fulano disse” e “todo mundo sabe”. Às vezes, o que “todo mundo sabe” conduz a um erro judiciário. Porque, frequentemente, certas opiniões de valor são emitidas, tratando certos investigados como indiciados, indiciados como denunciados, denúncia recebida pelo juiz como condenação prévia, condenação recorrível (pode ser anulável ou até anulada por um tribunal superior) como definitiva. É possível até (embora raro) que surjam novas provas que possibilitem a Revisão Criminal.
Apesar de tudo isso, ou até exatamente por causa disso, Norberto Bobbio chamou nosso tempo de “A Era dos Direitos”...
*Titular da cadeira número 35 da Academia Campista de Letras (ACL)

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